Com vida dedicada a cozinhar e ensinar, Mari Hirata morre aos 61

Chef também escreveu livros e foi colunista da Revista da Folha

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São Paulo

Há ocupações que requerem humildade e generosidade, capacidade de se dar ao outro. Em Mari Hirata, que morreu de câncer aos 61 anos neste domingo (30) em Tóquio, estas qualidades tanto abundavam que ela dedicou a vida a cozinhar e a ensinar —ofícios que requerem esta entrega, que era sua marca.

Mari era para mim uma irmã querida. Mesmo tendo morado em países diferentes por quase todos esses mais de quarenta anos de convivência, conseguimos nos manter unidos com intimidade e cumplicidade.

Mari Hirata em foto de 2010, na escola Wilma Kovesi de Cozinha - Maria do Carmo/ Folha Imagem

Tínhamos encontros quase sempre breves pelo mundo, em meio a nossas rotinas tumultuadas, mas eram sagrados.

Eu a visitava em Paris ou Tóquio (e ela, a minha casa em São Paulo, às vezes às escondidas, para pernoitar longe das inúmeras solicitações); desbravávamos restaurantes em rápidos assaltos a Copenhagen ou Kyoto ou à Auvergne francesa; e cozinhávamos juntos onde houvesse uma cozinha disponível, em qualquer lugar do planeta.

Suas aventuras além-mar começaram quando, aos 20 anos, estudante de jornalismo (dedicada a diagramação, que exercia no jornal trotskista O Trabalho, que eu editava na época), em 1980 resolveu fazer um curso desta especialidade em Paris.

Entre as aulas, começou a tomar aulas de doces, de pães... e foi ficando. Voltou três anos depois como chef-pâtissière do hotel Caesar Park em São Paulo, mas frustrou-se ao perceber que seus doces franceses, leves e pouco açucarados, não batiam com o gosto dominante daqui.

Alçou asas novamente: na virada da década de 1990 foi para o Japão conhecer a cerimônia do chá e outras delicadezas que intuía na convivência com uma família (pai nissei, o deputado João Sussumo Hirata, mãe japonesa de nobre estirpe, Cecília) com incrível sofisticação no paladar e habilidades na cozinha.

O começo lá foi difícil —trabalhava de graça para aprender. Até que, procurando melhor oportunidade, conseguiu um emprego de verdade. E não em qualquer lugar: foi na tradicional Toraya, confeitaria oficial da família imperial, tocada pela 17ª geração da mesma família.

Ali mergulhou na sofisticação da alta gastronomia japonesa, e ainda por cima conheceu o confeiteiro Hisao Sato, que se tornou seu marido e pai de seus dois filhos.

Em meados da década de 1990, Sato foi enviado a Paris para a abertura do recém-inaugurado Café Toraya.

Para lá se mudaram o casal e os filhos. Mari voltaria às suas origens de aprendizado, aprofundando-o (tornou-se, por exemplo, brilhante aluna da Le Cordon Bleu) e aplicando-o nos restaurantes em que trabalhou, mas onde também aprendia (sua melhor memória de aprender trabalhando foi dos tempos do L'Arpège, de Alain Passard, que ela considerava um gênio).

Passado o período de implantação do Café, voltaram todos para Tóquio em 2001. E, nos últimos vinte anos, Mari entregou-se a uma rotina incessante.

Desde 1995, quando a convidei para dar aulas no evento Boa Mesa em São Paulo, ela começou a despontar no Brasil como grande professora (além de cozinheira para eventos).

Começou a vir regularmente para dar aulas, para grupos cada vez mais numerosos, enquanto tinha uma legião de alunos fãs no Japão. Tanto os de lá quanto os de cá organizavam viagens de aprendizado para diferentes cantos do mundo, levando Mari como tutora e fonte de inspiração: ela ensinava sushis, foie gras, moquecas, e no seu repertório imenso não faltavam as doçarias que ela executava com precisão.

Além disso, seu jeito era tão cativante que terminava trabalhando também para receber turistas no Japão —somente conhecidos, ou indicados por estes. Nos passeios por parques e museus, nas visitas a mercados e restaurantes, recebia a todos com o mesmo sorriso largo de olhos fechados, fossem jovens cozinheiros, fossem celebridades do jet-set mundial, fossem estudantes ou banqueiros.

Mari também escreveu livros e foi colunista da Revista da Folha. Pela Publifolha, lançou "Minhas Receitas Japonesas"; pela BEĨ, "Mari Hirata Sensei", com Haydée Belda.

A generosidade de Mari era só comparável a seu metódico afinco na cozinha, e à alegria de viver (e comer e beber). Generosidade tamanha que enfrentou os últimos nove meses no maior recolhimento, pois não quis que os amigos se condoessem por meses com sua dor, que eu compartilhei e pela qual não me conformo.

Morreu em casa, em Tóquio, ao lado do marido Hisao e dos filhos Shohei e Anna. Deixa ainda seis irmãos. E este mundo de mortes estúpidas aos milhares, de genocidas ainda impunes, ficou agora ainda mais pobre sem ela.

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