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'Plea bargain' de Moro é centro de debate sobre prisões em massa e desburocratização nos EUA

Modelo que ministro tenta importar é elogiado por enxugar Judiciário, mas criticado por risco a inocentes

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São Paulo

Rejeitado por grupo de trabalho na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (6), o "plea bargain" é parte importante do pacote anticrime do ministro da Justiça Sergio Moro e está no cerne de debates nos Estados Unidos sobre desburocratização judicial, encarceramento massivo e prisão de inocentes.

Em inglês, "plea" significa pedido e "bargain" uma espécie de negociação (ou barganha) entre partes em troca de algo. Expediente comum na Justiça dos Estados Unidos, o "plea bargain" é um acordo penal em que o Ministério Público oferece ao réu uma pena mais branda do que a que ele poderia pegar caso fosse a julgamento. 

Em troca, ele deve confessar o crime, em uma espécie de "confissão premiada" --diferentemente da "delação premiada", que ganhou protagonismo no Brasil no âmbito da operação Lava Jato, o acusado não aponta infrações de outros, mas dele mesmo.

Com isso, o acusado não precisa nem se submeter ao processo e a Procuradoria não tem de produzir mais material para comprovar a acusação. Normalmente, o juiz tem de acompanhar as negociações e, por fim, aprovar o acordo.

O objetivo seria o de desburocratizar e descongestionar serviços judiciários, encurtando várias etapas processuais (inquérito, denúncia, julgamento, recurso) e deixando a Justiça concentrar tempo e esforços na análise de crimes mais graves.

Para os seus defensores, como Moro, o "plea bargain" gera economia de recursos; mais agilidade da Justiça; e redução da impunidade, já que mais atenção seria dada aos casos mais graves e ocorreria um número menor de prescrições de pena.

Além disso, eles também argumentam que pode gerar esvaziamento das prisões, já que as penas serão, em média, menores, o que implicaria em aumento de rotatividade e redução do tempo de permanência dos presos nas prisões.

"O Judiciário ganha fôlego para se concentrar em casos mais importantes, evitando o aumento da impunidade e empregando melhor seus recursos. Além de tais vantagens, uma justiça pactuada contempla a hipótese de que o acordo entre réu e Estado dará às vítimas reparações rápidas e adequadas", escreveu na Folha o advogado e mestre em ciências criminais Daniel Gerber.

Em janeiro, o Fórum Nacional de Juízes Criminais (Fonajuc) emitiu nota de apoio à proposta de Moro.

Há uma série de propostas que o Ministério Público pode fazer ao réu no modelo de "plea bargain". Ele pode oferecer a mudança da acusação para um tipo menos grave em troca da confissão judicial. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde há "plea bargain" mesmo para crimes graves, pode ser oferecida a troca da acusação de homicídio qualificado para homicídio simples.

O Ministério Público também pode oferecer a redução da quantidade de acusações e a recomendação ao juiz de uma sentença mais leve do que a habitual para o crime cometido.

No entanto, a importação do modelo de "plea bargain" para o Brasil enfrenta ressalvas de diversos especialistas.

O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini, professor da USP, defende que sejam feitos mais estudos antes da adoção do modelo.

"Temos uma população que é submetida a processo penal e que desconhece seus direitos básicos. A Defensoria Pública não tem estrutura suficiente para atender a todos eles. Então é muito possível que essas pessoas não tenham assessoria jurídica adequada no momento de negociar com o Ministério Público", afirma Bottini.

"Dado o nosso déficit de assistência jurídica e nossa realidade social, preocupo-me com a adoção do 'plea bargain', pois pode significar o aumento do encarceramento, a curto prazo. O que significa alimentar o crime organizado no Brasil", completa.

Além da possível elevação do encarceramento, a possibilidade de aumentar o risco da condenação de inocentes também é frequentemente levantado como desvantagem do modelo de "plea bargain".

Já foi percebida a recorrência de casos nos Estados Unidos de inocentes que aceitam um acordo por medo de enfrentarem um julgamento e receberem penas ainda maiores. O debate do "plea bargain" é nuclear nos Estados Unidos dado que mais de 90% dos casos criminais lá são resolvidos mediante acordos e não vão a julgamento.

Em reportagem de setembro de 2017 chamada "A Inocência é Irrelevante", a revista The Atlantic diz que 97% da condenações nos Estados Unidos decorrem de "plea bargains". No texto, cita-se um juiz da Suprema Corte, Anthony Kennedy, que teria dito que "negociações benéficas para ambos os lados [entre Ministério Público e advogados de defesa] determinam quem vai para a cadeia e por quanto tempo. O 'plea bargain' não é um apêndice do sistema da Justiça criminal. Ele é o sistema da Justiça criminal."

Diversos casos de inocentes que declararam culpa se tornaram clássicos no Direito americano, como o de Kenneth Kagonyera, que, temendo pena de morte, declarou-se culpado de homicídio doloso e cumpriu 10 anos de pena antes que tivesse sua inocência provada, em 2011. Levantamento da Universidade de Michigan e da Universidade da California Irvine mostra que de um total de 2.479 condenações de inocentes desde 1989 nos EUA, 301 (12%) contaram com confissões falsas.

Diferentes seriados norte-americanos têm abordado o tema. Mais recentemente, a minissérie The Staircase, presente no Netflix, mostrou com detalhes o caso do escritor Michael Peterson que, acusado de ter assassinado a mulher, aceita acordo para evitar encarar novo julgamento após ter passado oito anos na prisão.

Lançado em 2019, o livro Charged, de Emily Bazelon, traça relação entre o trabalho dos procuradores nos Estados Unidos, a consagração pública dessas figuras por meio da projeção da mensagem do rigor punitivo e o encarceramento em massa. Lá, a maior parte dos procuradores são eleitos. O caminho para a reeleição frequentemente é, argumenta Bazelon, colocar criminosos atrás das grades —na maior parte das vezes, por meio de "plea bargains", que incluem a pressão sobre os acusados, que algumas vezes são inocentes.

Além da reeleição, a figura de linha dura pavimentou as carreiras políticas de procuradores que hoje são políticos consagrados nos Estados Unidos, como, por exemplo, Rudolph Giuliani, que era conhecido como "xerife de Wall Street" e assim chegou ao cargo de prefeito de Nova York.

Gustavo Badaró, professor titular de processo penal da USP, diz que as soluções consensuais como o "plea bargain" têm sido adotadas em diversos países ao longo dos anos, como Itália, Portugal, Espanha e Paraguai. Trata-se, segundo ele, de uma maneira de reduzir custos em troca de uma Justiça de qualidade tendencialmente mais baixa.

Ele diz não ser contra a incorporação de alguns recursos do modelo, mas ressalta que o projeto feito por Moro contava com diversos problemas e que precisariam ser ajustados, especialmente por abrir espaço ao "overcharging" (excesso de denúncia).

O projeto do ministro da Justiça previa que, em alguns casos, o juiz não acompanharia a etapa inicial de oferecimento da denúncia. Nesses casos, diz Badaró, os réus poderiam ficar expostos a uma "Black Friday penal à brasileira", em que denúncias exageradas seriam oferecidas para que houvesse uma oferta de abrandamento posterior.

"Some-se a possibilidade de aumento do encarceramento e o projeto de privatização dos presídios e você tem algo muito perigoso. O 'plea bargain' vai ser o mecanismo para fornecer clientes para os presídios privados. Uma demanda suprida mais rapidamente e em maior quantidade", completa Badaró.

Ao negar a proposta do ministro da Justiça, parte dos deputados do grupo de trabalho afirmou que, ao se fundamentar no modelo americano de confissão de culpa, ela desrespeitava o preceito constitucional brasileiro da presunção da inocência.

O relator do projeto, deputado Capitão Augusto (PSL), disse que a proposta ainda poderá voltar a ser apresentada em projeto separado à Câmara. Ou seja, ainda há a possibilidade de implantação do "plea bargain", o grupo de trabalho apenas colocou um obstáculo.

O mesmo grupo manteve uma proposta que permite acordos entre Ministério Público e investigados por crimes de baixa gravidade, ideia defendida em projeto apresentado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.

Nesse caso, o réu confessa o crime e tem a pena substituída por medidas como reparação de danos, multas ou serviço comunitário.

A proposta possibilita acordos para casos de crimes de pena máxima inferior a quatro anos, caso a infração tenha sido sem violência ou grave ameaça. 

À reportagem, o advogado Daniel Gerber critica a decisão do grupo de trabalho.

"Sob o argumento de que o plea bargain excluiria garantias básicas do acusado, resolve manter na essência o modelo que gera massacres diários em penitenciárias e custo estrondoso ao Estado no que toca à persecução penal ao invés de simplesmente abrir seus olhos para o fato de que todo e qualquer cidadão que pode escolher um presidente, dirigir um veículo ou optar por uma ação delituosa também terá condições de, livremente, optar pelo que entender como melhor caminho para si quando diante de uma acusação criminal", afirma.

Pierpaolo Bottini, por outro lado, vê a proposta de não persecução penal para crimes leves como mais adequada do que a de Moro.

"O 'plea bargain' para casos sem pena de prisão é mais plausível porque não terá como consequência o aumento do número de encarcerados, embora mesmo nesse caso uma discussão mais profunda deva ser feita diante da possibilidade de acordos em casos sem provas ou com nulidades que poderiam levar a uma absolvição."

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