Mães que tiveram filhos mortos pela polícia temem que o mesmo ocorra aos que estão vivos

Mira, Rute, Débora e Miriam esperam respostas da Justiça e redobram atenção com a família

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Milena Teixeira
Salvador | AzMina

“Os caras vão morrer na rua igual barata. E tem que ser assim.” 

A imagem descrita pelo presidente Jair Bolsonaro na segunda (5) ao falar da mudança no excludente de ilicitude —proposta do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) para reduzir a punição de policiais que matem suspeitos no exercício da profissão— é o pesadelo de mães que já tiveram filhos mortos pela polícia. Pode acontecer de novo.

Mira Nascimento reconhece os passos dos filhos na escada, mas espera o barulho da chave na porta para dormir. Mal anoitece e Rute Fiuza vai para a janela, aguardar a caçula. Depois das 18h, Débora Maria da Silva começa a orar pelo neto. Miriam Duarte Pereira cochila no sofá e vaga pela sala até o sobrinho chegar. 

A preocupação dessas mulheres extrapola o instinto de proteção materno. Elas tiveram filhos mortos por policiais e, hoje, vivem com medo de que os familiares não voltem. Estão em alerta permanente e criam estratégias para evitar abordagens policiais.

Mulher posa em pé, em uma sala de estar, com cartaz em que estão fotos de um jovem negro de boné sob os dizeres "interromperam seus sonhos"
Mira Nascimento posa com o cartaz que o grupo Teatro do Oprimido, do qual o filho Rodrigo era parte, fez em sua homenagem - Mallu Silva/Revista AzMina

A baiana Mira Nascimento, 60, pede que os netos e os outros dois filhos evitem camisas e cortes de cabelo de que a “polícia não gosta”. “Eu já avisei, porque a polícia quer que eles tenham um padrão só, né? Infelizmente, olham para o preto e pobre com preconceito. Cabe a nós, mães, aconselharmos para evitar o pior.”

O zelo de Mira tem motivo. Em outubro de 2017, a funcionária pública perdeu o caçula, Rodrigo, 20, durante intervenção policial em um evento de carros de som em Salvador. 

No ano em que Rodrigo morreu, policiais brasileiros mataram em média 14 pessoas por dia, segundo o Atlas da Violência 2019, feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

Do total de 65.602 homicídios no país, 5.159 foram de intervenções de profissionais de segurança pública. De cada 4 pessoas mortas naquele ano, 3 eram negras, como Rodrigo. 

“Antes de saber que ele tinha morrido, eu estava angustiada. Parecia que ele não ia voltar. Eu olhava para a porta, esperava e nada de Diguinho. Tem quase dois anos que aconteceu, mas até hoje dói.”

Como Mira, a paulista Miriam Duarte Pereira, 57, perdeu o filho mais novo para a polícia. Miguel da Silva foi morto a tiros em 2003 em São Paulo. Tinha 20 anos e acabara de sair de um centro de tratamento de dependentes químicos.

Miguel assaltava um posto de gasolina. Mas em vez de ele ser encaminhado à delegacia e responder a processo criminal, foi morto pelos policiais. A professora, que já perdera o primogênito de forma violenta, redobrou o cuidado com os dois sobrinhos que cria.

“Estou sempre com o celular na mão e espero eles chegarem. Já passei noites em claro. Não gosto que saiam de noite, evito até mandar eles comprarem alguma coisa na rua”, diz Miriam. “A orientação aqui é só sair de casa com documento, porque, se acontecer alguma coisa, pelo menos a gente consegue identificar.”

Portar documentos não salvou o gari Edson Rogério da Silva, 29. Filho da ativista Débora Maria da Silva, ele voltava para casa quando foi baleado pela Polícia Militar na Baixada Santista em 15 de maio 2006.

“O Estado tinha declarado guerra ao PCC [Primeiro Comando da Capital]. Os policiais saíram matando aleatoriamente muita gente. Um deles foi meu filho. Eles sabiam que estavam matando um trabalhador, porque meu filho estava com a funcional [carteira de trabalho] no bolso.”

Naquele mês, policiais e paramilitares mataram cerca de 500 pessoas em resposta aos ataques do PCC daquele ano. A maioria, jovens negros.

Débora faz parte da organização Mães de Maio, que busca justiça para as vítimas de violência do Estado. Ela se preocupa com os netos, especialmente com filho de Rogério. 

“Ele é negro e toma vários ‘baculejos’ da PM. Meus netos mais claros nunca foram abordados pela polícia. Rezo muito para ele chegar bem.”

Mulher de meia idade com camiseta preta onde se lê "Respeita As Mina, As Mana, As Mona, As Pessoas" observa por uma janela
Rute ainda tem a sensação de que o filho Davi vai voltar a qualquer momento da padaria - Mallu Silva/Revista AzMina

Há mães que ainda esperam os filhos que não voltaram. 

Desde de outubro de 2014, a baiana Rute Fiuza, 50, aguarda Davi. Ele saiu de casa, no bairro de São Cristóvão, Salvador, rumo à padaria e não voltou. O jovem de 16 anos foi levado por policiais militares que buscavam outra pessoa. 

Rute nunca mais teve notícias do filho. “A minha dor é que Davi não fez nada, era praticamente uma criança. Eu não pude nem sequer enterrar meu filho, porque eles desapareceram com o menino. Às vezes parece que ele vai voltar”, diz ela, que mora com uma filha no bairro da Sussuarana, na capital baiana. 

Leila Tibiriçá, psicóloga e mestre em políticas sociais e cidadania, diz que é natural a sensação de “eterna espera” e o medo de uma nova perda. 

O assassinato dos filhos também potencializa outras violências a que essas famílias são expostas. “Esse tipo de morte mostra que nem elas nem a família estão seguros, e causa muitas vezes culpa na mulher, que questiona sua capacidade de proteger.” 

Outro problema é não ter a quem recorrer —a polícia, afinal, deixa de merecer sua confiança. “Muitas vezes essas mães não têm opção nem de sofrer, pois precisam garantir a sobrevivência dos outros filhos.” Do luto não reconhecido vêm consequências como depressão, síndrome do pânico e doenças cardiovasculares.

Nenhum caso citado nessa reportagem culminou em prisão de responsáveis. 

O Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) denunciou sete PMs por sequestro e cárcere privado de Davi, o filho de Rute, em setembro de 2018. A juiza Ailze Botelho Almeida Rodrigues transferiu o caso à Justiça Militar, e o processo ainda não foi julgado. 

Débora esperou 12 anos por respostas pela morte do filho.

Há oito meses, o MP-SP abriu uma ação civil pública para indenizar as vítimas do Estado. O processo criminal foi arquivado pelo promotor Otávio Borba. A ação diz que a “incansável mãe não teve como provar se foi agente público ou o crime organizado o autor da morte de seu filho”. 

Miriam e Mira seguem à espera. Elas dizem que foram à Corregedoria da Polícia Militar, mas não conseguiram informação dos processos. A Revista AzMina contatou a Corregedoria da PM da Bahia, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.

O temor dessas mães é que muitas outras se juntem a elas.

O pacote anticrime de Moro propõe mudar o excludente de ilicitude, previsto pelo Código Penal, para equiparar policiais em serviço a quem mata em legítima defesa. 

O ministro diz que o projeto incorpora algo “que os juízes já fazem na prática”. 

A proposta, em trâmite no Congresso, levou a protestos de mães de vítimas. A advogada criminalista e professora Camila Hernandes vê riscos. “É provável que aumente a letalidade policial. São mortes de negros e pobres”, afirma.

Mira concorda. “O pacote é cruel com o povo negro e periférico, porque dá ainda mais poder para os policiais matarem. Como é que eu vou pensar em criar meu neto desse jeito?”

Esta reportagem foi publicada originalmente na Revista AzMina 

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