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Na contramão de Doria, gestão Covas turbina programa de arte urbana em SP

Projeto terá grafite em homenagem a João Gilberto, lambe-lambes e oficinas nas escolas

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São Paulo

Vestido com máscara, óculos de proteção e macacão laranja, o então prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) empunhou uma máquina de borrifar e, no primeiro mês de seu mandato, em janeiro de 2017, ajudou uma equipe da prefeitura a cobrir de tinta cinza grafites da avenida 23 de maio.

Dois anos e nove meses depois, a gestão Bruno Covas (PSDB), no mesmo mandato, dará uma guinada e promoverá um programa de arte urbana pela capital. 

O programa de disseminação de arte urbana terá início já em outubro e abarcará grafites, lambe-lambes (técnica utilizada com pôsteres fixados em paredes com cola de polvilho ou farinha) e fotografias, entre outros.

Parceria entre as secretarias de Cultura e de Subprefeituras, que habitualmente é encarregada de apagar essas obras, o projeto contará com R$ 1,5 milhão de investimento inicial.

O projeto é tratado como segunda etapa Museu de Arte de Rua. Gestadosob Doria, ele surgiu após o então prefeito afirmar que havia errado no tratamento inicial que dispensara aos grafiteiros. No entanto, nunca ultrapassou escala modesta.

Desta vez, a ideia é promover dezenas de intervenções espalhadas pela região central e pelos bairros. O projeto foi desenhado em setembro durante a realização de um seminário de arte urbana organizado pela Prefeitura de São Paulo.

Referência importante no universo da arte de rua, Speto, 47, participará com grafite em homenagem ao músico João Gilberto (1931-2019), em local ainda a ser definido.

A obra não deixa de ser mais um dos chamados "atos de resistência" que a administração Covas e, mais especificamente, o secretário de Cultura Alê Youssef têm feito para se contrapor ao governo federal, comandado por Jair Bolsonaro (PSL). Em 2020, por exemplo, a prefeitura promoverá o festival Verão Sem Censura, composto de peças censuradas ou vetadas no país.

Esboço de grafite sobre João Gilberto que artista Speto fará no Irã - Arquivo Pessoal

A inação do presidente em relação à morte de João Gilberto, em julho, foi motivo de incômodo de parcela relevante da classe artística.

À Folha, Youssef afirma que "há uma incompreensão sobre a identidade do Brasil". "Se você critica o Carnaval, está criticando um símbolo de identidade nacional, que é parte da cultura. Se você não homenageia o João Gilberto quando ele morre, da maneira que era merecido, está afrontando um ícone de identidade nacional."

Speto diz que estava preparando um grafite sobre o músico para a embaixada do Brasil no Irã, localizada em Teerã, quando, em conversa com o secretário, decidiram que São Paulo também poderia receber intervenção semelhante.

"A arte na rua é mais acessível. Ela não precisa de convite, você não precisa ser alguém que entende de arte para apreciar. Ela é democrática: está lá para todo mundo, todas as raças, classes sociais, religiões. Fazer arte na rua, em uma grande escala em uma empena, é como pendurar um quadro na parede, mas na cidade", diz Speto, que não cobrará por sua participação. Ele apresenta suas obras no perfil @speto no Instagram.

Na mesma linha, cinco grafiteiras ficarão responsáveis pelo Tarsila Inspira, com grandes grafites com referências à artista plástica Tarsila do Amaral (1886-1973), cujas obras modernistas servirão de base para intervenções de figuras renomadas como Mag Magrela e Simone Siss. Os locais ainda serão definidos.

Ainda no âmbito do programa, o projeto Giganto, da fotógrafa gaúcha Raquel Brust, 37, voltará aos pilares do elevado Presidente João Goulart , o Minhocão.

Em 2013, 20 retratos feitos pela fotógrafa de moradores do entorno, de transeuntes e de moradores de rua que se abrigam sob o Minhocão foram ampliados e fixados nos pilares do elevado. Desta vez, esses painéis de seis metros de altura por três de largura, colados como lambe-lambes, serão colocados dos dois lados das colunas.

"Ali existe uma estrutura muito perfeita para uma exposição em sequência, funciona como uma galeria, dá um impacto grande no espaço urbano", diz Brust. "Brinco que mudamos a luz do lugar sem trocar uma única lâmpada."

Brust diz que ainda não começou a fazer sua pesquisa de personagens, mas que a ideia será a de buscar indivíduos que expressem a diversidade cultural da cidade. "Vou abordar muitas tribos, traçar um perfil de pessoas que trazem atitudes positivas diante da cidade e da vida". "O mais importante do projeto é despertar a empatia quanto aos mais diversos tipos de pessoas".

Obra de Raquel Brust feita para o projeto Giganto em pilar do elevado Costa e Silva, o Minhocão, em São Paulo - Danilo Verpa-16.out.2019/Folhapress

O também fotógrafo Rui Mendes, 57, conhecido por suas imagens do rock brasileiro dos anos 1980 e 1990, será, a um só tempo, sujeito e objeto de celebração.

No ano em que completa 40 anos de profissão, terá uma foto que tirou de Raul Seixas em 1987 ampliada para cobrir a empena de um edifício no centro da cidade. A ideia inicial é a de instalar essa imagem, inédita, em um prédio na região do viaduto Santa Ifigênia.

O retrato faz parte de uma série de fotos que Mendes tirou na casa do músico baiano no Butantã, na zona oeste de São Paulo. Em 2019 completam-se 30 anos da morte de Seixas.

"Foi uma sessão muito despojada. Cheguei à casa dele e a mulher dele pediu para eu acordá-lo. 'Como assim, acordar o Raul?' Subi a escadaria de uma edícula e ele estava lá, dormindo em uma cama de casal, e acordou já posando para as fotos", relembra Mendes.

Projeto prevê a ampliação dessa foto inédita de Raul Seixas feita pelo fotógrafo Rui Mendes - Rui Mendes/Divulgação

Além dessas intervenções, o programa da prefeitura incluirá parceria com a secretaria de Educação. No começo de 2020 será realizado um chamamento de interessados em ministrar oficinas de arte urbana na rede municipal de ensino. A ideia é a de que os alunos, então, utilizem o que aprenderem para realizar intervenções nos muros de suas escolas.

Um terceiro eixo do programa será, por fim, a viabilização de parcerias público-privadas para projetos de arte urbana. 

Para Alexandre Barbosa Pereira, antropólogo, professor da Unifesp e autor do livro "Um Rolê pela Cidade de Riscos: Leituras da PiXação em São Paulo", é possível olhar o programa a partir de duas perspectivas.

Por um lado, segundo ele, trata-se da retomada de um processo de captura do grafite como agente de embelezamento de São Paulo pelo poder público, que foi rompido pela administração de Doria, mas que foi, em grande medida, adotado pelos demais prefeitos da cidade nas últimas décadas depois de Jânio Quadros (1986-1989). Nesse sentido, não teria um caráter particularmente inovador.

"Quando falamos em arte urbana, pensamos em práticas de intervenção estética que questionam o modo como se dá a ordenação do espaço urbano. Questionam segregação, desigualdade. O grafite e a pichação levam para os centros mais enobrecidos elementos que seriam ocultados dos processos de constituição das cidades", diz Pereira.

"Quando a prefeitura cria esses projetos, ela quer domesticar os processos de questionamento do modo como se dá o poder e os processos de ocupação da cidade", completa.

Por outro lado, argumenta o antropólogo, o atual momento político e cultural do país oferecem um caráter peculiar à ação da prefeitura. 

"Se o intuito é trazer referências artísticas que têm sido perseguidas, e estamos vivendo um momento de retrocesso em que a arte tem sido vista como algo negativo e improdutivo, acho positivo que existam iniciativas artísticas."

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto trazia o antigo nome elevado Costa e Silva, ao se referir ao Minhocão. O nome atual da via é Presidente João Goulart. O texto foi corrigido. 

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