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Luciana Temer

Da relativização das violências sexuais

Se não mudarmos, não venceremos a vergonhosa marca do registro de um estupro a cada oito minutos

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Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta

Diante dos últimos acontecimentos resolvi refletir sobre o que a nossa sociedade (ou parte dela) entende por violência sexual. Duas decisões judiciais muito recentes nos ajudarão nessa tarefa.

No primeiro caso, a vítima é de Santa Catarina, tem 21 anos, é bonita, trabalha em eventos e era virgem a época dos fatos. Conta que estava fora do seu juízo normal quando o acusado manteve com ela conjunção carnal e acredita que tenha sido dopada. As câmeras do local mostram que eles permaneceram isolados por seis minutos. No depoimento, a mãe da vítima conta que ela chegou chorando, em um estado alterado, com a roupa suja de sangue e esperma. O motorista do Uber que a levou para casa confirma que ela não parecia normal, apesar de que não aparentava estar alcoolizada.

O acusado, em um primeiro momento, negou ter tido relação sexual com a jovem, mas seu depoimento foi desmentido pelo laudo pericial. Então admitiu que teve a relação, alegando que foi plenamente consentido. No entanto, foi na palavra da vítima que o promotor e o juiz não acreditaram. A não condenação e o vazamento da audiência judicial causaram grande comoção social, e as mídias passaram a usar a expressão "estupro culposo", tipo penal que não existe, para ironizar a decisão, uma vez que o promotor, para pedir a absolvição, usou o argumento de que o réu não tinha tido a intenção (dolo) de estuprar. A postura do juiz, advogado e promotor foram tão absurdas que o Conselho Nacional de Justiça instaurou procedimento disciplinar para apurar a conduta do magistrado.

No segundo caso, uma menina de oito anos foi vítima de violência sexual praticada por um tio. O caso foi julgado em primeira instância e o réu condenado. No entanto, ao decidir sobre o recurso impetrado, a 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a decisão desclassificando o fato, que passou de estupro de vulnerável para importunação sexual, bem mais brando, e reduzindo a pena de 18 anos de prisão para um ano e quatro meses em regime aberto. O argumento para tanto foi de que não houve conjunção carnal (penetração), portanto não havia que se falar em estupro de vulnerável.

As duas situações narradas envolvem o crime de estupro de vulnerável que, tecnicamente, se caracteriza pela pratica de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou com alguém que por enfermidade ou deficiência mental não tem o necessário discernimento para consentir ou, ainda, com quem, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

No primeira caso, o estupro estaria configurado pelo impedimento em oferecer resistência, uma vez que a vítima alegou que não estava em seu juízo normal. Mas os julgadores preferiram acreditar que uma jovem que se manteve virgem até os 21 anos decidiu conscientemente perder a virgindade com um sujeito em um quartinho no meio de uma festa numa relação de seis minutos ao invés de acreditar que ela foi dopada.

No segundo caso, o estupro se daria pela presunção de violência em razão da idade, mas os desembargadores preferiram acreditar que a violência sexual contra uma menina de oito anos pode ser "leve" e não caracterizar estupro de vulnerável.

Me parece que, nos dois casos, o que se verifica é uma distorção na noção do que é a violência sexual. Quando é que nós vamos realmente entender que para caracterização do estupro não é necessário que o crime seja praticado com uma arma ou com agressão física? Que não importa quem é a vítima, qual foi a sua atitude ou as circunstâncias do crime? Quando vamos entender que qualquer violência sexual praticada contra uma criança ou adolescente é extremamente grave, independentemente de ter ou não havido penetração?

O fato é que, enquanto não pararmos de relativizar essa violência, seremos uma país permissivo com a prática e não venceremos a vergonhosa marca do registro de um estupro a cada oito minutos.

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