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Famílias permanecem acampadas em estrada quatro meses após enchente no RS

Ocupantes da estrada se recusam a desocupá-la pelos mais variados motivos, como medo de saques na residência afetada e cansaço da rotina nos abrigos temporários

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Débora Ely
Rio Grande do Sul | Reuters

Há dois meses, uma ponte se tornou o teto da família de Milton do Nascimento. Expulso de casa pela enchente que inundou o Rio Grande do Sul no início de maio, o homem de 58 anos improvisou, com a esposa e a enteada, uma moradia sob o concreto da estrutura, no entroncamento das BRs 116 e 290, em Porto Alegre.

O abrigo à sombra da ponte fica a apenas 300 metros da residência de Milton, onde a água subiu até a altura de dois metros, levantou o piso, derrubou o telhado e despejou um amontoado de entulhos. Mesmo com a casa ainda inabitável e sem perspectivas de retorno, a família resiste em deixar as margens da estrada e se mudar para um local mais seguro.

Segundo o mais recente mapeamento da prefeitura da capital gaúcha, 12 famílias, que somam 40 pessoas, permanecem morando, quatro meses após os alagamentos, às margens da rodovia na região das ilhas.

Milton do Nascimento ao lado da esposa Gabriela de Freitas e da enteada Natalia da Silva debaixo da ponte onde estão morando em Porto Alegre, após as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul - Reuters

O número tem recuado gradualmente – no pico da enchente, a estrada lembrava um campo de refugiados, com dezenas de barracas enfileiradas no acostamento –, mas sintetiza um impasse que o poder público ainda não conseguiu solucionar.

Os atuais habitantes da estrada se recusam a desocupá-la, apesar da disponibilidade de vagas em um centro humanitário inaugurado pelo governo estadual na cidade e do recebimento de benefícios sociais, pelos mais variados motivos, como medo de saques na residência afetada e cansaço da rotina nos abrigos temporários.

Já no caso de Milton, a permanência se dá pelos numerosos animais mantidos pela família e a impossibilidade de alocá-los em um alojamento urbano — ao todo, são mais de 40 bichos.

Milton e a esposa, Gabriela de Freitas, de 28 anos, construíram, com madeira e lonas doadas por voluntários, uma cocheira para suas 24 cabras e um chiqueiro para os três porcos que criam no canteiro dos pilares da ponte. Também mantêm amarrados no terreno dois javaporcos, cinco cavalos e pelo menos dez cachorros.

"Se não fossem os bichos, eu já tinha dado um jeito de ter ido para outro lugar. Mas o que me sobrou foram eles. As coisas materiais eu arrumo de novo; meus animais, não", disse Milton à Reuters.

O casal decidiu se instalar debaixo da ponte para se proteger da chuva, do frio e dos carros no início de julho, depois de dois meses morando em sua caminhonete no acostamento da BR. Usaram um dos pilares da estrutura como parede e o cercaram com cobertores, placas de isolamento térmico e filme PVC, que permite a entrada de luz natural.

Mobiliaram a área interna com itens também doados — uma geladeira sem motor, usada como armário para armazenar comida devido aos ratos, sofá e mesa, além de fogão, tanquinho e TV, ligados com a energia elétrica de uma rede vizinha. Milton e Gabriela ainda ergueram um mezanino com estacas de madeira, que acessam por uma pequena escada, onde a família dorme em colchões e armazena suas roupas.

A passagem de veículos, sobretudo de ônibus e caminhões, na pista acima da moradia temporária causa estrondos e tremores frequentes.

"Treme tanto que, de noite, eu chego a cair do colchão", contou à Reuters a mãe de Milton, Iauria do Nascimento, de 80 anos, que se juntou a eles há pouco mais de um mês.

O dia a dia da família tem ares de normalidade apesar das condições adversas. O casal ocupa boa parte da rotina com a lida dos animais. Milton mantém seu trabalho informal de frete quando há demanda, e Gabriela estuda à noite em uma unidade de Educação de Jovens e Adultos. A sua filha, Natália da Silva, de 10 anos, frequenta à tarde o 5º ano em uma escola localizada em frente ao acampamento. No final do dia, costumam se reunir para assistir a uma novela.

A parte mais crítica, contam, é a higiene pessoal. O banheiro funciona em uma barraca vizinha à ponte, abandonada por uma família que retornou para casa, onde tomam banho com baldes. O município tem abastecido os moradores regularmente, enchendo as caixas d’água armazenadas no local.

"Depois de passar o que a gente passou ali em cima (da rodovia), isso aqui não é nada. Agora, a gente está no luxo. Eu tenho tudo: comida para comer, cama para dormir e fogão para cozinhar. Claro, a gente queria tomar um banho de chuveiro. Mas essa é a situação que a gente tem no momento", disse Gabriela.

REALOCAÇÃO

Os acampamentos na rodovia pautaram, no mês passado, uma reunião entre representantes do governo gaúcho e da prefeitura de Porto Alegre. O estado orientou que o município ofereça as vagas disponíveis em um centro de acolhimento montado na cidade para as famílias que seguem na estrada, e a prefeitura disse que monitora a situação com incursões frequentes.

"Eles têm uma resistência grande em sair daquele espaço, por mais precário e inseguro que seja. Temos tentado, com diálogo, convencer as pessoas e oferecer um abrigo adequado. Não passa pela prefeitura, nem é nosso papel, a ideia de retirar aquelas pessoas de maneira coercitiva", afirmou à Reuters o adjunto da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, Lucas Vasconcellos.

A permanência das famílias na BR reflete, também, a dificuldade em alocar de maneira definitiva os moradores que tiveram suas residências destruídas pela enxurrada. O estado e os municípios gaúchos têm reclamado de atraso na entrega de moradias prometidas pela União, enquanto o governo federal diz que as prefeituras têm demorado em cadastrar as vítimas.

A alegada lentidão na resposta aos danos causados pela enchente foi motivo de embate recente entre o governador do estado, Eduardo Leite (PSDB), e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando ele esteve no Rio Grande do Sul para entregar as primeiras 44 casas a pessoas que perderam suas moradias.

O governo federal anunciou a compra assistida de 10.000 residências prontas, via Caixa Econômica Federal, e a construção de 11.500 unidades no programa Minha Casa Minha Vida no Rio Grande do Sul. Já o estadual planeja erguer 500 moradias provisórias, com 30 entregues até o momento, e 300 definitivas.

Com renda oriunda do Bolsa Família e de trabalhos informais, a família de Milton se enquadra nos critérios da assistência habitacional do governo federal. Segundo ele, uma equipe da prefeitura esteve em sua casa para fazer um laudo técnico – um dos requisitos para ser cadastrado e receber uma casa nova –, mas ainda não houve retorno.

"O cidadão não está querendo saber de laudos ou cadastros, ele quer saber da casa dele. Temos o dever de mostrar essa angústia para o presidente e seus ministros", disse à Reuters o vice-governador gaúcho, Gabriel Souza (MDB).

À Reuters, o secretário-executivo da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Maneco Hassen, reforçou que o ritmo de entregas de residências depende do encaminhamento, pelas prefeituras, das listas de moradores com a comprovação de que suas casas ficaram inabitáveis.

"Não temos como dar uma casa para alguém se não temos minimamente os dados daquela família e sem ter a certeza de que a casa daquela pessoa foi efetivamente destruída; senão, vira um programa sem-fim. As prefeituras precisam fazer a sua parte. E é claro, também, que construir casas não é do dia para a noite", afirmou Hassen.

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