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Polícias ampliam uso de reconhecimento facial, mas tecnologia carece de evidências

Dispositivo é adotado em 264 projetos pelo país, mas viés racial e bases de dados precárias preocupam especialistas

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Rio de Janeiro

O reconhecimento facial se expande na segurança pública com a promessa de se somar ao trabalho de identificação, para além da coleta da impressão digital e outros métodos para detectar suspeitos. Hoje, há 264 projetos ativos no país, com câmeras em locais que vão de vias públicas a prisões.

Os dados são do Panóptico, levantamento do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), com apoio da Open Society Foundations e da Ford Foundation.

O levantamento indica que todos os estados do Brasil já adotam ou estudam a implementação da ferramenta. Isso inclui usos esporádicos, como grandes eventos, ou como parte política de segurança.

Na perícia de identificação, o reconhecimento facial pode contribuir para investigações ou na busca por desaparecidos. A tecnologia também permite que polícias ampliem monitoramento das cidades.

De acordo com especialistas, porém, a ferramenta ainda carece de estudos que comprovem a eficácia na segurança pública. O reconhecimento facial também gera preocupações sobre racismo, por ser treinada principalmente com rostos brancos, o que reduz a acurácia na identificação de pretos e pardos.

Esta é a última reportagem da série Não Identificado, de Vida Pública, uma parceria entre a Folha e o Instituto República.org, que mostra o trabalho de peritos em identificação.

Reconhecimento facial na polícia da Bahia; estado já prendeu 1.700 pessoas que foram identificadas pelas câmeras - Ascom SSP

"Policiais sempre foram criticados por um faro enviesado contra a população negra", diz Daniel Edler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

"O investimento tira dos agentes o poder discricionário da abordagem e dá isso para a tecnologia. Mas essas ferramentas são desenvolvidas a partir de um padrão de corpos brancos. Quando se soma esses fatores, é dada uma roupagem técnica para um racismo social."

Em São Paulo, por exemplo, até as câmeras corporais dos agentes devem ter reconhecimento facial, ampliação prevista em edital publicado neste ano. Na capital, a ferramenta já encontrou uma mulher desaparecida no terminal rodoviário do Tietê.

Câmeras com a tecnologia emitem um alerta quando encontram um suspeito. O operador da vigilância compara a imagem da rua com a do banco de dados para avaliar se a pessoa encontrada é de fato foragida da Justiça.

Se isso for constatado, uma patrulha se direciona ao local para confirmar a identidade do suspeito presencialmente, tanto na comparação entre a foto do banco e o rosto da pessoa como na checagem de seus documentos.

Depois, se os policiais tiverem a confirmação da identidade, o suspeito é levado até a delegacia, onde conferem o mandado de prisão para checar que está em aberto.

Policiais da Bahia monitoram câmeras a partir do Centro de Operações e Inteligência de Segurança Pública, em Salvador - Ascom SSP

Na maior parte dos casos, as imagens usadas para o reconhecimento facial vêm do banco de mandados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que reúne ordens de prisão em aberto. Mas, segundo Daniel Edler, da USP, o banco tem problemas na qualidade dos dados.

Existem, por exemplo, mandados de prisão que permanecem em aberto mesmo depois de revogados. Além disso, há casos em que a imagem do suspeito é antiga ou de baixa qualidade, o que interfere no reconhecimento.

O major da polícia militar Moisés Travessa, superintendente de Telecomunicações da Secretaria de Segurança Pública, atribui isso a possíveis erros da ferramenta na polícia da Bahia, que usa o banco de dados do CNJ.

Até agora, a ferramenta ajudou a prender 1.744 suspeitos no estado. Lá, segundo o major, a tecnologia só emite alerta se a semelhança entre o suspeito localizado na rua e o registrado no banco de mandados for acima de 90%. As câmeras são colocadas em locais com maior incidência de crimes.

Travessa diz que não sabe se a ferramenta tem mais dificuldade para distinguir pretos ou pardos, mas que, por ser aplicada em um estado de maioria negra, a tecnologia tem mais capacidade para isso.

"Naturalmente, capturamos muitos rostos negros, então a ferramenta tem se aperfeiçoado nessa captura. O alarme só é gerado mediante o mandado de prisão, e não de acordo com a cor."

Câmeras são colocadas em locais com maior incidência de crimes - Ascom SSP

Na Bahia, em 2022, um homem negro ficou detido por 26 dias acusado de roubo depois de ser identificado por uma das câmeras de reconhecimento facial. Depois, foi descoberto que o crime havia sido cometido por outra pessoa, em 2012.

Sobre o caso, o major afirma que é possível que o suspeito tenha tido um mandado de prisão que foi revogado e, por isso, sua foto constava no sistema.

Em nota, o CNJ diz que aprovou uma resolução com diretrizes para o reconhecimento de pessoas com o objetivo de evitar a prisão de inocentes. Uma das diretrizes é priorizar o reconhecimento cara a cara, com ao menos quatro pessoas para fazer esse trabalho.

De acordo com Walter Capanema, diretor de inovação na consultoria de direito digital Smart3, além da questão racial, a tecnologia é mais treinada para reconhecer homens de meia-idade. Por isso os piores resultados são entre jovens mulheres negras.

Além disso, as imagens da câmera nas ruas também estão sujeitas a influências do ambiente, como iluminação e posicionamento da pessoa.

"O fato de existirem tantos elementos externos coloca essa ferramenta em uma eficácia aplicável só em casos muito específicos, como aeroportos", diz.

Ele afirma que o ideal seria ter profissionais especializados na tecnologia para tomar a decisão final de ir atrás do suspeito localizado pelas câmeras. Hoje, há estados que treinam policiais para melhorar o uso da ferramenta e a comparação das imagens, inclusive a Bahia.

Lá, a polícia também estuda ampliar a tecnologia para buscar desaparecidos, de acordo com o major Travessa. A imagem usada para encontrar a pessoa será a que for entregue pela família no boletim de ocorrência.

Segundo Daniel Edler, da USP, também há poucas evidências sobre a eficácia da ferramenta para esse fim.

"No banco, há pessoas que estão lá há muito tempo. Se uma criança sumiu da família há dez anos, ela terá feições muito diferentes hoje, e o sistema não vai reconhecer."

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