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PCC não quer se infiltrar na política, quer fazer lobby para influenciar as decisões, diz autor de livro sobre facção

O sociólogo Gabriel Feltran avalia que as facções criminosas preferem o uso de influência para obter vantagens econômicas

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São Paulo | BBC News Brasil

Corrupção, criminalidade e tráfico de drogas são apontados pelos brasileiros como os maiores problemas do país, às vésperas das eleições municipais de 2024.

Uma pesquisa DataFolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que 14% dos brasileiros dizem sofrer com a presença de facções criminosas ou milícias em suas vizinhanças. Em capitais, esse percentual chega a 20%.

O crime organizado também está no centro do debate eleitoral.

'As pessoas pensam que há uma infiltração do PCC na política. A estratégia do PCC não é essa', diz o sociólogo Gabriel Feltran, autor de Irmãos: Uma história do PCC. Na foto, Marco Camacho, o Marcola, apontado como líder da facção - AFP

Em São Paulo, candidatos à prefeitura trocam acusações de que seus oponentes teriam ligações com o PCC (Primeiro Comando da Capital), facção criminosa nascida nos presídios paulistas, hoje com ramificações em diversos países.

No Rio de Janeiro, o Tribunal Regional Eleitoral anunciou a mudança de endereço de mais de 90 seções eleitorais, numa tentativa de reduzir a influência de traficantes e milicianos sobre o voto.

Com as maiores taxas de homicídio do país na última década, Norte e Nordeste enfrentam o avanço das facções criminosas nacionais (como PCC, mas também o Comando Vermelho) para essas regiões, o que vem junto com a influência política desses grupos sobre as administrações locais.

"Quando as economias ilegais crescem muito, elas vão funcionar como qualquer outra economia capitalista, vão botar o estado para ser o seu balcão de negócios", diz Gabriel Feltran, diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês) e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), em entrevista à BBC News Brasil.

Um dos principais pesquisadores do crime organizado no país, o sociólogo é autor de Irmãos: Uma história do PCC (Cia. das Letras, 2018), entre outros livros dedicados ao tema.

Com base em seus estudos, Feltran avalia que a principal forma de influência do crime organizado na política brasileira hoje não é pela infiltração de candidatos ligados aos grupos criminosos na corrida eleitoral, mas pela atuação junto ao poder político para obter vantagens econômicas.

"Trata-se basicamente da influência de empresários sobre políticos", afirma o sociólogo. "Não é porque os caras são criminosos e estão se infiltrando na política. É porque eles são empresários e estão fazendo o que todo empresário faz."

Feltran vê como equivocadas as notícias recentes, baseadas em investigação da Polícia Civil, de que o PCC teria criado um banco para financiar candidaturas.

"São poucas as pessoas que entendem o que está acontecendo. A grande maioria faz esse tipo de raciocínio, que é o raciocínio da Lava Jato", diz o pesquisador, fazendo um paralelo com a operação da Polícia Federal que investigou esquema de corrupção na Petrobras.

"As pessoas pensam que há uma infiltração do PCC na política. A estratégia do PCC não é essa", afirma.

"A estratégia do PCC não é de uma organização revolucionária que quer tomar o estado e comandá-lo. Tampouco é a estratégia do Pablo Escobar, de subjugar o estado militarmente, matar juiz, matar promotor, peitar todo mundo, colocando o estado pra trabalhar para ele."

"A estratégia do PCC não é nem uma, nem outra, é muito mais poderosa do que essas duas."

À BBC News Brasil, Feltran falou ainda sobre os desafios para novos prefeitos diante das evidências da participação de facções criminosas em licitações municipais; do poder das milícias sobre o voto; do que ele considera uma "autonomização" do poder policial com relação às elites brasileiras; e do avanço das facções para o Norte e Nordeste e o efeito disso para as eleições deste ano.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

"Não é porque os caras são criminosos e estão se infiltrando na política. É porque eles são empresários e estão fazendo o que todo empresário faz", diz Feltran - Divulgação

Pesquisa DataFolha divulgada na segunda-feira (2) mostrou que 14% dos brasileiros percebem a presença de facções criminosas ou milícias nas suas vizinhanças. Em capitais, esse percentual chega a 20%. Diante desse quadro, como a presença do crime organizado influencia as eleições municipais? Eu repito isso a cada nova eleição, então não é uma coisa nova no meu jeito de pensar, acho que o que está mudando muito é a escala dessa presença.

Trata-se basicamente da influência de empresários sobre políticos. Empresários dos mercados legais e ilegais usam sua influência, fazem pressão, fazem acordos com políticos que podem favorecê-los economicamente, sobretudo. Lobby.

Então, na minha leitura, não é porque os caras são criminosos e estão se infiltrando na política. É porque eles são empresários e estão fazendo o que todo empresário faz, que é influenciar o sistema político, a tomada de decisão política.

Eu vejo o PCC, há muitos anos, como uma sociedade secreta de empresários.

Trata-se de uma fraternidade de empresários criminais, muito desigual internamente do ponto de vista econômico, então há pequenos [empresários], médios, grandes, gigantescos. E a organização ajuda esses empreendedores a se fortalecerem.

O senhor pode dar um exemplo? Por exemplo, um empresário que tenha 15 revendas de carro na cidade de São Paulo. A legislação de leilões, que é onde ele vai comprar os carros, é uma legislação que interessa para ele. Então ele vai precisar de vereador, de deputado, para votar a lei que mais favorece o negócio dele.

Isso é uma coisa reconhecida, considerada sem nenhum problema. Os empresários gostam de pressionar para fazerem leis boas para eles, para o negócio deles.

A única diferença é que esse cara que a gente está falando agora, tem um monte de carro ilegal que ele vende também. No meio dos carros legais dele, tem um monte de carro roubado, por isso ele consegue oferecer os carros a um preço menor e o negócio dele é muito competitivo.

Então, se uma legislação interessa, ele vai buscar influenciar o poder político para aprovar.

Uma licitação pode ter interesse para ele, por exemplo, para fazer a manutenção de carros da prefeitura. Então ele vai pressionar, vai pagar a candidatura de pessoas a quem ele tenha acesso e contato para ganhar essa licitação.

Então é por aí que esse negócio acontece. Não é porque o cara é criminoso, é porque o cara é empresário.

Mas isso se dá no nível individual ou da organização? Os empresários autônomos têm os seus contatos, mas, falando do PCC especificamente, tem um segundo ponto. No PCC, existem coordenações para favorecer esses negócios para os empresários, que são as chamadas sintonias.

Elas têm decisões estratégicas de como a organização vai priorizar o apoio aos seus empreendedores. Por exemplo, a Sintonia do Progresso [setor responsável pela logística da droga do PCC] vai favorecer uma regulação da cadeia de valor, digamos, da cocaína.

Então quer comprar a cocaína num preço bem baixo lá na Bolívia, na Colômbia, e entregar a preço de custo para o revendedor ou para o exportador no estado de São Paulo.

Então aí não estamos falando mais do empreendedor individual, estamos falando da estratégia organizacional, da estratégia da facção.

E a estratégia da facção também pode precisar de políticos - ter acesso a um político importante que tenha entrada no Porto de Santos, que conheça o presidente do sindicato. Que depois pode ser alguém com quem se possa ter uma conversa para fazer um esquema de corrupção que facilite para todos os empreendedores do PCC que fazem negócio lá.

Nesse caso, estamos falando também de lobby empresarial, são interesses econômicos movendo a decisão política. É a mesma coisa, só que é tudo ilegal.

Então é assim que eu vejo. Quando as economias ilegais crescem muito, elas vão funcionar como qualquer outra economia capitalista, vão botar o estado para ser o seu balcão de negócio.

"Estamos falando de lobby empresarial, são interesses econômicos movendo a decisão política. É a mesma coisa, só que ilegal", diz Feltran. Na foto, o Porto de Santos, que se tornou ponto estratégico para o PCC - Getty Images via BBC

Em 2020, o senhor disse numa entrevista que não via em grupos como PCC e CV o objetivo de eleger deputados e prefeitos, como queriam Pablo Escobar ou Dom Corleone [mafioso fictício da trilogia cinematográfica O Poderoso Chefão]. Mas, recentemente, uma investigação da polícia civil revelou que o PCC teria criado um banco para financiar campanhas de candidatos. E uma reportagem do Globo tratou de candidaturas ligadas a grupos de extermínio, PCC e CV. Como o senhor vê essas notícias e isso muda aquela sua opinião? Não, eu vejo essas notícias como muito mal feitas.

Eu li bastante essas [notícias] do banco e é bem a visão da polícia. Se tem uma pessoa que opera muito dinheiro, essa pessoa, para a polícia, é dona desse dinheiro.

Eles não fazem a diferença entre quem é trabalhador e quem é proprietário.

Então tem um monte de gente lavando dinheiro numa conta, que eles chamam de "conta de passagem" ou "conta banco". E tem uma pessoa que está com o nome nessa conta.

Aí, dessa conta, sai dinheiro para financiar uma candidatura. Então eles consideram que essa conta - que tem milhões que passaram por ela, de centenas de operadores - é operada por aquela pessoa, que é dona daquele dinheiro e que, portanto, é um banco do PCC que vai financiar candidaturas. Errado, simplesmente.

O senhor avalia então que é uma interpretação equivocada da polícia do funcionamento desse processo de lavagem de dinheiro? Exatamente. São poucas as pessoas que entendem bem o que está acontecendo. A grande maioria faz esse tipo de raciocínio. Que é o raciocínio da Lava Jato, que é o mesmo raciocínio de sempre.

"Existe um crime, existe um criminoso, existe uma organização criminosa."

Você vai lembrar da Lava Jato. Existe um crime: estão desviando dinheiro na Petrobras. Existe um criminoso: esses caras ligados ao PT. Existe uma organização criminosa, que é o PT. E existe o chefe da organização criminosa, que é o Lula.

Então, toda a corrupção na Petrobras estava sendo coordenada pelo Lula, são aquelas setinhas do [ex-procurador da República e coordenar a força-tarefa da Lava Jato, Deltan] Dallagnol, apontando todas para o Lula.

Todo mundo pensa o PCC nesse mesmo modelo. Tudo o que acontece, vai ser o Marcola [Marco Willians Herbas Camacho, apontado como líder do PCC] que está por trás, coordenando.

Então essas manchetes [sobre o suposto banco do PCC) estão erradas, simplesmente.

Feltran faz um paralelo entre a interpretação que a Polícia Civil faz do funcionamento do PCC e a lógica dos investigadores da Lava Jato - Reprodução

Agora, voltando ao ponto de 2020. O que eu estava dizendo ali, e mantenho, é o seguinte. O Comando Vermelho tinha uma estratégia parecida com a das milícias, que é: eu domino um território e tudo o que acontece nesse território, sobre o qual sou soberano, me deve imposto, uma taxa de extorsão.

Então o cara abre um bar numa favela do Rio que é CV, ou que é de milícia, ele tem que pagar a taxa de extorsão. Esse é um modelo criminal que é muito frequente na América Latina.

Esse modelo vai fazer um tipo de pressão sobre a política, que é local. Se o meu problema é dominar Nova Iguaçu, por exemplo, os vereadores de Nova Iguaçu, o prefeito, os secretários, esses são os agentes políticos importantes. É sobre eles que tenho que exercer ação política.

Por isso que tantos políticos morrem em Nova Iguaçu, o problema é local.

A estratégia do PCC não é essa, nunca foi essa. O PCC não faz extorsão. O PCC faz regulação de mercado e passa do varejo para o atacado. Ele quer controlar a cadeia de valor de cada um dos produtos que estão envolvidos nas suas atividades criminais.

Mas que diferença isso faz em termos de ação política? As pessoas pensam que tem uma infiltração do PCC na política. E lá em 2020, eu estava dizendo: a estratégia do PCC não é essa. A estratégia do PCC não é de uma organização revolucionária que quer tomar o estado e comandar o estado.

Tampouco é a estratégia do Pablo Escobar, de subjugar o estado militarmente, matar juiz, matar promotor, peitar todo mundo, colocando o estado pra trabalhar pra ele, como foi feito na Colômbia.

O que eu estava dizendo em 2020 é que [a estratégia do PCC] não era nem uma, nem outra, e que era muito mais poderosa do que essas duas, na minha leitura.

Que é: regular as cadeias de valor, virar atacadista. Um conjunto de grandes empresários, articulados entre si, e com influência política de lobby sobre o estado.

Funciona, mais ou menos, como funciona a base econômica do Centrão.

Vamos supor, um produto agrícola, o maior exportador de soja do Brasil. Ele vai disputar as pequenas coisas no Congresso, a alíquota que vai ser recolhida no Mato Grosso, o quanto ele tem que pagar de contribuição para o sindicato de motoristas de caminhão, pequenas coisas que aumentam muito o seu lucro, e que não são pautas públicas. É assim que eu vejo o PCC atuando.

Comando Vermelho tinha estratégia parecida com a das milícias: dominar um território e cobrar taxa de extorsão de todos nesta região. Esse modelo está ligado a uma pressão sobre a política local, diz Feltran - AFP

O PCC se tornou um dos temas centrais da eleição na cidade de São Paulo, com candidatos apontando supostas ligações de Pablo Marçal com o grupo. Já Marçal nega e diz que o PCC tomou o estado, controlando usinas de etanol, postos de gasolina, etc. Como o senhor vê essa centralidade da facção no debate eleitoral paulistano? Eu sou pesquisador, então vejo com muito interesse. Mas vejo também como algo esperado.

Para mim foi muito notável a presença dos grupos militares na eleição presidencial de 2018, de 2022.

Ficou extremamente nítido que os grupos militares, sejam policiais, sejam das Forças Armadas, estavam influenciando diretamente o processo eleitoral e os governos.

Para mim parece muito evidente que, nessas eleições municipais, a presença de policiais, desse pessoal midiático do populismo penal, cresce muito, e é no plano municipal que isso se manifesta de uma maneira muito evidente.

Esses caras ocuparam uma parcela significativa da burocracia, eles controlam um monte de relações burocráticas dentro do estado, mas eles controlam também muito o recurso na periferia com extorsão.

E eles controlam a segurança privada. Então eles têm três fontes de recursos muito importantes e eles têm muita influência política.

Isso para mim salta aos olhos, e se debate muito pouco.

Eu não acho que o PCC é protagonista, ele pode ser protagonista no debate, mas não é protagonista no financiamento das campanhas. Vejo com muito mais protagonismo a presença da polícia politizada e de grupos militares e religiosos bancando candidatos, pressionando candidatos, fazendo candidatos avançarem.

Mas o PCC crescendo como cresce nos últimos 30 anos vai se tornando progressivamente um ator político mais importante, e vai influenciando.

"O PCC pode ser protagonista no debate [eleitoral], mas não é protagonista no financiamento das campanhas. Vejo com muito mais protagonismo a presença da polícia politizada e de grupos militares e religiosos", diz Feltran - Agência Brasil

Esse ano também foi revelado que a prefeitura de São Paulo fez negócios com empresas de ônibus ligadas ao PCC e uma investigação mostrou a infiltração da facção em ao menos 13 prefeituras do interior para fraudar licitações. Qual é de fato a penetração das facções em negócios para além do narcotráfico e que desafios isso coloca para os futuros prefeitos? Todas essas notícias que você mencionou são empresários que estão lutando por influência para ter licitações, para ter favorecimentos, e que estão misturando dinheiro legal e ilegal.

Então, veja, eu tenho empresas de ônibus. Maravilhoso. Agora, a minha empresa de ônibus vai ter mais lucro se eu injetar dinheiro da cocaína nela.

Eu tenho um monte de hotéis. Lindo. Meu hotel tem dez pessoas, eu falo que tem 30, que tem 300.

Quem vai lá ver se tem ou não? E eu falo que essas 300 pagaram R$ 1 mil por dia para participar de evento no hotel. Então aquelas 300 viram R$ 300 mil. Eu tinha R$ 300 mil em caixa de tráfico de drogas, de repente eu tenho R$ 300 mil de um evento. O dinheiro está lavado.

Então é a conexão entre dinheiro legal e ilegal que faz essas coisas funcionarem.

E que desafios isso coloca para os futuros prefeitos? Das duas uma, ou ele resolve enfrentar, não ceder a esse interesse, e possivelmente cai, porque esses interesses e esses poderes são maiores que o dele.

Ou ele tolera e lida com eles. E deixa passar, e deixa conceder, e vai tocando.

Um estudo publicado pelo Observatório das Metrópoles da UFRJ mostrou que, em 2022, Jair Bolsonaro e [o governador do Rio de Janeiro pelo PL] Cláudio Castro receberam votações mais altas em áreas controladas por milícias na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sugerindo uma correlação entre controle miliciano e apoio a candidatos conservadores. Como o senhor vê esse resultado e avalia que esse quadro se repete em outros locais do país? Eu não concordo com a ideia de que [a correlação] é com conservadores, mas com [candidatos] ligados à polícia, que por sua vez vai ser conservadora.

Mas essa passagem não é evidente para mim, porque é a rede clientelista que faz esse voto, que pode ter inclusive coerção violenta. Mas não é uma rede ideológica que faz esse voto.

Então o senhor acredita que as pessoas que moram em áreas de milícia têm mais propensão a votar em candidatos ligados à polícia? Eu acredito, porque a polícia é quem está por trás desse poder. A milícia é uma extensão do poder policial.

O que eu tenho teorizado é que a milícia está se autonomizando das elites. Esse é o ponto. As polícias se autonomizam das elites que sempre controlaram esses grupos.

Qual era a cadeia de comando em São Paulo? Tem a elite, depois tem o governante ligado àquela elite, depois tem a polícia controlada por esse governante, depois tem o justiceiro controlado pela polícia.

A vida inteira, houve elites econômicas estabelecidas no Brasil controlando os grupos policiais.

O modelo clássico é o coronelismo: tem o coronel, que controla o seu jagunço. E o jagunço controla o escravo, o trabalhador. O coronel não precisa fazer esse controle.

Agora pensa isso em escala social, você tem a elite econômica, o mundo militar policial, as classes trabalhadoras.

O Bolsonaro não é controlado por elite nenhuma, exceto pela elite militar propriamente. É isso que eu estou chamando de autonomização.

As elites não controlam mais a jagunçada policial que ocupou o Congresso.

'Bolsonaro não é controlado por elite nenhuma, exceto pela elite militar propriamente. É isso que eu estou chamando de autonomização', diz Feltran, que vê emancipação das forças militares com relação às elites nacionais - Agência Brasil

Os últimos anos têm sido marcados pela expansão do crime organizado para as regiões Norte e Nordeste, com as duas regiões registrando as taxas de homicídio mais altas do país, muito acima da média nacional. Como esse quadro pode impactar as eleições municipais nas duas regiões este ano? Esse movimento de expansão das facções impacta o mercado ilegal local, e aqueles grupos locais que faziam sobretudo o tráfico de drogas, mas também o tráfico de armas vinculado.

Que faziam essa jagunçagem – esse espectro da segurança local, extra legal, impactado diretamente. E as facções começam a tomar esses espaços.

Então o problema não é só compreender a subida [da taxa de homicídio] dos últimos anos nos estados do Norte, mas compreender que ela está perfeitamente conectada com o que aconteceu no Sudeste antes. Trata-se de um movimento de expansão das facções que dura 30 anos hoje. E esse movimento chega lá.

Então, o que a gente está vendo é uma espécie de passagem de hegemonia desses grupos armados locais, para grupos armados organizados nacionalmente.

PCC, CV, polícia militar. São essas grupos que controlam a criminalidade local pequena de um lado e de outro, fazendo seus acordos no nível local.

E, nesse sentido, aquela mesma forma de influência na política que esses grupos têm no Sudeste deve se replicar no Norte e Nordeste? Eu avalio que [a influência do crime organizado na política] é ainda mais fácil. Porque, no Sudeste, desde os anos 1950, foi construída uma espécie de intermediação burocrática entre o poder violento e a tomada de decisão estatal.

No Nordeste, essa camada burocrática não existe, ela é toda personalizada em torno do coronel, do clientelismo de famílias. Então é muito mais simples na verdade, no Nordeste. Na Amazônia, então, nem se fala.

Não há um estado burocrático construído que, matou ali, então vai ter investigação, vai ter esclarecimento desse homicídio, essa pessoa [que cometeu o crime] vai ser neutralizada. Matou ali, ou você mata de volta, ou você perdeu, entendeu?

Pichações em muro no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, durante rebelião em duas unidades prisionais que deixou 26 mortos em 2017: expressão da disputa entre facções no Nordeste - AFP

E o senhor vislumbra saídas possíveis para esse aumento do poder do crime organizado na política? Tem quatro pontos que seriam pilares de um modelo de segurança progressista, ou democrático. Quatro coisas que a gente não faz, infelizmente não fará, mas eu falo mesmo assim.

Primeiro: esclarecimento de homicídios. Esclarecer homicídio é recuperar soberania. Quem define quem vive ou morre num território, é o estado ou a facção? Ou é a milícia?

Hoje quem define quem vive ou morre é facção e milícia. Como o estado pode mudar isso? Esclarecendo homicídio. Esse é um ponto central para qualquer política de segurança do mundo.

Segundo: regulação de mercados ilegais. Não precisa legalizar, para regular. O que foi feito no caso das peças de carro [em São Paulo, tema de estudo de Feltran e de reportagem da BBC] pode ser feito com droga, com contrabando, com tudo.

Terceiro: controle externo da atividade policial e da politização policial. Você não pode permitir, como o Brasil permite, que seus militares, seus policiais, sejam candidatos, façam discurso político, tenham partido, tenham ideologia, tenham lado. Não existe isso. Exceto no Brasil.

Então isso é fundamental. Você não pode deixar esses caras se autonomizarem, se você quiser ter um estado soberano. Então o controle da corrupção policial, da politização policial é o terceiro pilar.

Quarto: tem que acabar com a política penitenciária que existe no Brasil, que é entregar a molecada na mão da facção.

Então são quatro coisas que, associadas, revertem o ciclo que hoje entrega a molecada e dinheiro na mão da facção e de policial corrupto.

Isso algum dia vai ser feito no Brasil? Não creio. Mas é o que tinha que ser feito.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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