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Aborto era um termo médico usado para todo tipo de perda gestacional

Mulheres que sofrem aborto espontâneo vivem preconceito em serviços de saúde, diz historiadora

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Rachel E. Gross
The New York Times

Em uma manhã de 2012, oito semanas após engravidar, Shannon Withycombe acordou sangrando: ela estava tendo um aborto espontâneo. Na sala de emergência, no entanto, nenhum médico ou enfermeiro pronunciou essa palavra. Em sua alta hospitalar, a equipe médica dizia que ela passou por um "aborto incompleto".

Withycombe, historiadora de medicina na Universidade do Novo México, conhecia o termo de sua pesquisa em jornais médicos do século 19; era uma linguagem médica para um aborto espontâneo que não havia saído completamente do útero (em inglês, o termo "miscarriage" é usado para aborto espontâneo, enquanto o termo "abortion" é mais usado para aborto induzido ou incompleto). Mas foi chocante ver isso em suas próprias anotações médicas no século 21.

"Vou admitir, fiquei surpresa", disse ela. "Como a maioria de nós, fui socializada a pensar que aborto espontâneo e aborto eram coisas muito diferentes."

Fisiologicamente, aborto espontâneo e aborto medicamentoso são experiências quase idênticas - Reprodução

Fisiologicamente, aborto espontâneo e aborto medicamentoso são experiências quase idênticas. Ambos começam com uma diminuição nos hormônios que mantêm a gravidez, seguidos por sangramento vaginal, e então o útero se contrai como um punho para expelir os tecidos da gravidez. Ambos são tratados com as mesmas ferramentas e medicamentos, o que explica por que leis que restringem o aborto também afetam mulheres que têm abortos espontâneos.

No século 21, nos Estados Unidos, é claro, a distinção importa. O diagnóstico estranho de Withycombe é uma relíquia de uma época em que a palavra "aborto" não tinha nenhuma das conotações legais, morais ou políticas que tem hoje —um tempo antes de os médicos terem medicalizado o aborto espontâneo e os legisladores terem moralizado o aborto.

Nos círculos médicos durante os anos 1800, "aborto" era o termo preferido para qualquer forma de perda precoce da gravidez. Frequentemente era acompanhado por um modificador como "espontâneo" (significando que aconteceu por conta própria), "retido" (os tecidos foram retidos no útero) ou "habitual" (vários abortos espontâneos ocorreram consecutivamente).

As mulheres, por sua vez, frequentemente se referiam aos seus abortos espontâneos com termos coloquiais, como "perda", "incidente" ou "deslize". Mas ocasionalmente também usavam "aborto", como Withycombe descobriu ao vasculhar diários e cartas para seu livro "Perdido: Aborto Espontâneo na América do Século 21".

Em 1846, uma recém-casada de 18 anos que teve um aborto espontâneo enquanto estava na Trilha de Santa Fé escreveu em seu diário que "uma poderosa Providência" havia "nos privado da esperança por um aborto, da terna esperança dos mortais!"

No entanto, quando se tratava de interrupção intencional da gravidez, prevaleciam os eufemismos e a linguagem codificada. Anúncios de jornal ofereciam misturas de ervas que prometiam "remover obstruções", "induzir a menstruação" ou regular a "irregularidade feminina", mas também podiam ser usadas para interromper uma gravidez.

O aborto "não era considerado algo agradável de se fazer ou particularmente honroso de se fazer", disse Lara Freidenfelds, historiadora de parentalidade e reprodução. "Era considerado necessário."

Enquanto parteiras ou mulheres poderiam saber a diferença entre perda de gravidez intencional e acidental, os médicos raramente faziam essa distinção.

Para começar, eles não tinham ferramentas. A razão pela qual uma mulher perdia uma gravidez permanecia um mistério, com textos médicos sugerindo que tal infortúnio poderia ser causado por fadiga, dança, vermes fecais ou, de acordo com um livro didático de 1808, "a extração de um dente".

Além disso, para os médicos, a distinção não importava realmente. A maioria dos abortos espontâneos era tratada com segurança em casa. Uma vez que um médico ou parteira se envolvesse, significava que algo havia dado errado. Nesse ponto, eles não "se importavam realmente com como começou", disse Withycombe. O sentimento era: "Uma vez que determinamos que não vai parar de sangrar, precisamos intervir e limpar o útero o mais rápido possível para salvar sua vida", acrescentou.

Na década de 1840, a distinção se tornou mais relevante. Uma classe emergente de médicos cavalheiros encontrou-se em competição com parteiras, homeopatas e outros praticantes. Para convencer os pacientes a procurá-los, os médicos precisavam provar que tinham melhor formação e resultados.

O problema era que eles não tinham. "Os médicos na década de 1850 não podiam fazer muito mais do que os romanos podiam fazer", disse James Mohr, historiador da Universidade de Oregon e autor de "Aborto na América: Origens e Evolução da Política Nacional". "Esse é um dos segredos sujos de toda a questão", acrescentou.

O que eles tinham era ciência. À medida que os médicos refinavam sua compreensão do desenvolvimento fetal, começaram a elaborar um vocabulário mais técnico em torno da gravidez. Até o final do século 19, alguns livros didáticos médicos definiam "aborto" como um aborto espontâneo que ocorria nos primeiros três meses de gravidez, e "aborto espontâneo" como aquele que ocorria após a formação da placenta.

Ainda assim, Mohr disse: "Isso não os torna melhores obstetras-ginecologistas. Eles apenas entendem o que está acontecendo." Ele acrescentou que "ao fazer essas distinções, eles estão mostrando que sua ciência importa".Alguns desses médicos se viam não apenas como autoridades médicas, mas como autoridades morais. Um deles era Horatio Storer, um jovem ginecologista formado em Harvard que acreditava que a vida fetal começava na concepção e que as mulheres eram "destinadas pela natureza" a ter filhos.

Em 1857, chocado com o que via como atitudes frouxas da sociedade e das mulheres em relação à interrupção intencional, Storer iniciou uma campanha para tornar esse "mal para a sociedade" um crime —a menos que fosse realizado por um médico. Apesar da oposição dos colegas, ele eventualmente teve sucesso: até 1910, todos os estados haviam efetivamente criminalizado o aborto.

Como "aborto" ainda era um termo genérico, Storer usava "aborto criminoso" em seus escritos para se referir a qualquer interrupção não autorizada por um médico; essas, ele chamava de "terapêuticas".

Logo, o modificador "criminoso" não era mais necessário. Na imaginação popular, a palavra "aborto" agora implicitamente sugeria ilegalidade e dúvida moral.

Os médicos estavam cientes dessas conotações, mesmo enquanto continuavam a usar "aborto" em suas próprias anotações e revistas. Um manual popular de gravidez dos anos 1940, "Maternidade Expectante", assegurava às mulheres que quando seus médicos usavam o termo "aborto", não queriam sugerir que seus abortos espontâneos fossem intencionais. "Não se assuste ou se ofenda", escreveu o autor, pois "ele está apenas perguntando se você já teve um aborto espontâneo".

Na década de 1980, uma vez que o aborto foi descriminalizado na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, alguns médicos reconheceram que os pacientes poderiam ficar perturbados com a dissonância. Em 1985, três obstetras-ginecologistas britânicos imploraram no The Lancet, um jornal médico, para que os médicos se alinhassem com a linguagem de seus pacientes, que usavam "aborto espontâneo" para descrever a perda de gravidez e ficavam chocados ou ofendidos ao ouvir "aborto".

"Houve essa determinação repentina por parte dos médicos de separar essas duas coisas, de separar essas duas experiências", disse Andrew Moscrop, pesquisador de desigualdades em saúde que documentou a mudança de linguagem de "aborto" para "aborto espontâneo" em importantes revistas de obstetrícia e ginecologia após a publicação da carta no The Lancet.

Os pacientes tendiam a concordar com a mudança. Em 2019, uma pesquisa descobriu que a maioria dos pacientes com aborto espontâneo preferia que seus médicos usassem termos como "aborto espontâneo" ou "perda precoce da gravidez". Em contraste, "aborto" era o termo menos reconhecido e mais confuso — "um termo odiado por todos", disse Elizabeth Clement, obstetra-ginecologista da Penn Medicine e autora principal da pesquisa.

Essa divisão foi bem intencionada e destinada a evitar encontros como o de Withycombe, em que um termo médico desafia a experiência vivida de um paciente. No entanto, de certa forma, a divisão dessas duas experiências apagou as maneiras como elas podem se misturar e se sobrepor, dizem os médicos que cuidam de pessoas grávidas.

Um dos poucos espaços onde aborto e aborto espontâneo ainda se misturam é a Linha Direta de Aborto e Aborto Espontâneo. Em 1998, Linda Prine, co-fundadora da linha direta, era médica de família no Baixo Manhattan, em Nova Iorque. Ela fornecia cuidados para aborto espontâneo em seu trabalho diurno em um centro de saúde comunitário e fazia abortos uma vez por semana em uma clínica da rede de planejamento familiar "Planned Parenthood" nas proximidades.

Embora Prine tivesse as ferramentas e o treinamento para realizar abortos no centro de saúde, ela tinha que encaminhar as pessoas que desejavam interromper suas gravidezes para o Planned Parenthood. No caminho, muitas pessoas ficavam desamparadas. "Isso realmente me impressionou", disse ela. "Não me senti bem em dividir essas duas práticas."

Em 2019, à medida que as restrições ao aborto se espalhavam e os casos de abortos autoinduzidos aumentavam, Prine teve uma ideia: uma linha direta que mulheres de todos os perfis poderiam ligar para receber apoio e orientação ao passar por uma perda de gravidez.

Tendo pesquisado a confusão e o descaso que as mulheres que sofriam aborto espontâneo enfrentavam na sala de emergência —e tendo sofrido quatro abortos espontâneos ela mesma—, ela sabia que a linha direta deveria atender mulheres passando por aborto espontâneo e aborto.

"Nós meio que vemos isso em um conjunto", disse Prine. "É a mesma conversa, quer tenha começado com um aborto espontâneo ou um aborto."

Embora seja improvável que a palavra "aborto" volte a englobar todas as formas de perda de gravidez, para Prine, a conexão histórica é reveladora. "A palavra 'aborto' realmente se aplica a ambos", disse ela. "É apenas que estigmatizamos tanto a palavra que não podemos usá-la com precisão. É uma divisão falsa."

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