Descrição de chapéu The New York Times aborto

Quando pílula abortiva foi proibida no Brasil, mulheres recorreram a traficantes de drogas

Quatro comprimidos usados para o aborto são adquiridos no mercado paralelo por valores entre R$ 1.000 e R$ 2.000

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Stephanie Nolen
Rio de Janeiro | The New York Times

Em novembro passado, Xaiana, estudante universitária de 23 anos do norte do Brasil, começou a trocar mensagens de texto com um traficante de drogas do sul do país. Seguindo suas instruções, fez uma transferência de R$ 1.500 para ele, valor que cobriria suas despesas cotidianas por vários meses. E então aguardou três semanas agoniantes pela chegada, pelo correio, de um blister com oito pílulas brancas sem marcas.

Quando tomou os comprimidos, tiveram o efeito que ela esperava: Xaiana fez um aborto medicamentoso em casa, com seu namorado ao lado, pondo fim a uma gestação de oito semanas.

Mas ela continuou a ter hemorragia por semanas —uma complicação incomum, mas não rara, das pílulas abortivas.

Manifestantes protestam em Zurique (SUI) contra a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de revogar a decisão judicial Roe v. Wade a respeito do aborto
Manifestantes protestam em Zurique (SUI) contra a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de revogar a decisão judicial Roe v. Wade a respeito do aborto - Arnd Wiegmann/Reuters

"Cada vez que eu entrava debaixo do chuveiro, parecia uma cena de homicídio", disse ela, que teve medo de procurar ajuda, porque o uso do medicamento que ela usou, misoprostol, para provocar o aborto é ilegal no Brasil.

Xaiana temia que se fosse a uma clínica, os médicos poderiam descobrir que ela induzira o aborto e denunciá-la à polícia. A pena para quem pratica aborto no Brasil é de até três anos de prisão.

"Nunca na vida me senti tão sozinha", ela comentou, pedindo para ser identificada apenas por seu primeiro nome, por medo de ser processada.

Depois de sete semanas ela procurou uma clínica de mulheres e admitiu que havia interrompido uma gravidez. Lhe fizeram uma cauterização simples, e ninguém a denunciou.

Os defensores do direito ao aborto nos Estados Unidos sugerem que o país, após a revogação da decisão judicial Roe v. Wade, vai diferir em um ponto crucial da era anterior à legalização nacional do aborto. As mulheres que buscam interromper a gravidez hoje têm a opção do abortamento medicamentoso, usando pílulas hormonais para induzir o corpo a expelir o feto em casa. É uma prática aprovada pela Food and Drug Administration.

Mas a onda de leis estaduais que começaram a entrar em vigor após a decisão da Suprema Corte, na sexta-feira passada (24), derrubando Roe v. Wade, proíbe os abortos de todo tipo, incluindo os abortos medicamentosos. Para conseguir as pílulas legalmente, as mulheres terão que viajar até estados onde o aborto é permitido para consultar um médico, mesmo que seja por vídeo ou telefone, conforme o exigido pela FDA.

A trajetória das pílulas abortivas no Brasil pode oferecer uma visão de como medicamentos abortivos podem ficar fora do alcance das pessoas e do que acontece quando isso ocorre.

O alvo original da proibição ao aborto no Brasil era o cirúrgico, mas a proibição foi ampliada depois de o medicamentoso tornar-se mais comum, levando a uma situação atual em que traficantes de drogas controlam quase todo o acesso às pílulas. As mulheres que as procuram não têm garantia da segurança ou autenticidade do que estão tomando. E, se sofrem complicações, têm medo de buscar ajuda médica.

Hoje o misoprostol adquirido da Índia, do México e Argentina é vendido no mercado clandestino entre R$ 1.000 e R$ 2.000 pelos quatro comprimidos recomendados para um aborto. Enquanto isso, um vidro com 60 comprimidos custa menos de R$ 80 nos Estados Unidos.

Uma repórter do New York Times levou menos de um minuto para encontrar alguém disposto a lhe vender oito comprimidos por R$ 1.500 num bairro do Rio de Janeiro conhecido pela venda de artigos no mercado paralelo.

"Você compra o medicamento de um traficante. Não sabe o que é. O processo inteiro vira uma coisa assustadora, sigilosa. Deixa de ser um medicamento", comentou Maira Marques, diretora de campanha da organização Milhas pelas Vidas das Mulheres, que promove o acesso ao aborto seguro e legal.

"Essa deveria ser uma maneira simples, menos complicada de fazer um aborto, mas agora, em vez disso, virou a compra de um produto contrabandeado."

O aborto é ilegal no Brasil desde 1890, embora exceções tenham sido adotadas em 1940 para grávidas em decorrência de estupro ou incesto, ou quando a gravidez coloca a vida da mulher em risco. Mais recentemente, o aborto foi autorizado também para mulheres cujo feto tem anencefalia (quando faltam partes do cérebro).

Mas a partir do final dos anos 1980, espalhou-se a notícia de que um remédio usado contra úlceras, o Cytotec, podia "desencadear a menstruação".

De fato, foi a experiência de mulheres brasileiras com o uso do fármaco para fins não autorizados que levou às pesquisas e eventual adoção global do aborto medicamentoso como uma maneira menos invasiva e mais barata de interromper a gravidez, algo que podia aumentar o acesso das mulheres ao aborto, especialmente em países em desenvolvimento.

Você compra o medicamento de um traficante. Não sabe o que é. O processo inteiro vira uma coisa assustadora, sigilosa. Deixa de ser um medicamento

Maira Marques

Diretora de campanha da organização Milhas pelas Vidas das Mulheres

O Cytotec é misoprostol, que forma uma metade da combinação de hormônios recomendada pela Organização Mundial de Saúde para promover o aborto medicamentoso (a outra metade é a mifepristona).

A mifepristona nunca teve seu uso aprovado no Brasil, e, desconhecendo o fármaco, as mulheres não o procuram no mercado paralelo.

Normalmente basta o misoprostol para induzir um aborto seguro; um estudo publicado no The Lancet concluiu que 8% das mulheres que usam misoprostol para interromper uma gravidez sofrem complicações, incluindo sangramento e dor abdominal que requerem atenção médica.

O misoprostol foi vendido em farmácias sem receita médica até 1991. Depois disso, ela passou a ser exigida, embora a regulamentação de sua emissão não fosse rígida.

Segundo a ginecologista e obstetra carioca Ana Teresa Derraik, a disponibilidade das pílulas levou à queda acentuada no número de mulheres que apareciam em hospitais correndo risco de vida por infecções ou hemorragias resultantes de abortos que haviam tentado induzir com raiz de mamona, água sanitária ou cabides. "Foi um grande alívio para aqueles de nós que não pensamos que as mulheres devem ser punidas dessa maneira."

Mas o misoprostol estava atraindo a atenção de militantes antiaborto no Brasil e no mundo. Em 1998, a Anvisa incluiu o fármaco na lista de medicamentos controlados, ao lado dos opiáceos, o que implica que qualquer pessoa flagrada importando ou comprando o produto pode ser punida com até 15 anos de prisão. As companhias farmacêuticas internacionais que produzem misoprostol sofreram boicotes e deixaram de produzir o fármaco. Uma pequena empresa brasileira assumiu a manufatura de uma versão genérica para venda exclusiva ao Ministério da Saúde, para uso hospitalar.

Em 2006 a lei que proibiu a distribuição de misoprostol foi reforçada, passando a proibir também a venda ou publicação de informações sobre a droga na internet.

Em 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente, com o apoio entusiástico da comunidade evangélica brasileira, o acesso ao misoprostol ficou ainda mais difícil.

Organizações internacionais de defesa dos direitos reprodutivos, como a Women on Web, antes mandavam pílulas abortivas ao Brasil pelo correio, e grupos feministas brasileiros as adquiriam e forneciam, com instruções para seu uso seguro, disse Juliana Reis, diretora da Milhas. Agora isso praticamente parou.

"Devido ao clima político, está muito mais difícil conseguir produtos seguros e receber atendimento adequado, porque as redes que faziam isso no passado estão com muito mais medo", disse Sonia Corrêa, pesquisadora de tecnologias de saúde reprodutiva, no Rio de Janeiro.

Novas diretrizes divulgadas pelo Ministério da Saúde este mês incluem a afirmação de que "induzir o abortamento por telemedicina, utilizando-se de fármacos de controle especial, pode causar danos irreversíveis à mulher".

A Dra. Helena Paro, ginecologista de Uberlândia que durante a pandemia de Covid introduziu consultas por telemedicina para pacientes que fariam abortos legais, descreveu a diretriz como "completamente ideológica e contrária às evidências científicas". A OMS considera a prática segura.

Em resposta a perguntas do NYT, o Ministério da Saúde disse que as diretrizes refletem o fato de que "o misoprostol é uma medicação de uso exclusivo hospitalar, sua utilização fora desse ambiente não é permitida por lei" e que o uso de misoprostol para fins de aborto via telemedicina significaria que as mulheres "não teriam acesso pronto a serviços de saúde que poderiam lidar com as possíveis complicações clínicas ou cirúrgicas decorrentes do procedimento".

Derraik disse que tem visto uma intensificação da fiscalização do uso de misoprostol nos hospitais onde ela presta serviços abortivos a mulheres que atendem as condições legais para a interrupção da gravidez e que tem observado o aumento simultâneo no nível de investigação de mulheres que relatam ter sofrido aborto espontâneo.

Tradução de Clara Allain

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