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Caso Imane Khelif: teste de gênero não deveria ser parâmetro, dizem especialistas

Fim do binarismo homem-mulher na sociedade fez o COI abolir testes e acatar a designação do passaporte da atleta

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São Paulo

O que seria apenas um duelo válido pelas oitavas de final do peso meio-médio de boxe nas Olimpíadas de Paris, nesta quinta-feira (1º), se tornou uma grande polêmica sobre discussão de gênero no esporte e, principalmente, a validade dos testes de elegibilidade de gênero.

A desistência da italiana Angela Carini após levar o primeiro soco da argelina Imane Khelif poderia ter sido apenas um nocaute, mas o fato de Khelif ter sido desclassificada do Mundial de 2023, na Índia, por não passar no citado teste, acabou virando manchetes mundo afora e provocando acaloradas discussões nas redes sociais.

Segundo o COI (Comitê Olímpico Internacional), a lutadora de 25 anos havia sido desqualificada do Mundial por "níveis elevados de testosterona que não atendiam aos critérios de elegibilidade".

Umar Kremlev, presidente da IBA (Associação Internacional de Boxe), que organiza o Mundial, no entanto, deu outro esclarecimento: "Com base em testes de DNA, identificamos vários atletas que tentaram enganar seus colegas fingindo ser mulheres".

Imane Khelif (à dir.) após a luta contra a italiana Angela Carini; a argelina é reconhecida como mulher pelo COI e tem autorização para competir em Paris - Reuters

Sendo teste de dosagem de testosterona, um hormônio sexual masculino que também é produzido em pequenas quantidades pelas mulheres, ou exame de DNA, que mostra se os genes são XX ou XY, os testes de gênero foram abolidos nos anos 2000 anos pelo COI, uma vez que a sociedade atual não se guia pelo binarismo homem-mulher, como era no passado. Agora, ele acata a designação impressa no passaporte da atleta.

"Hoje essa é a questão mais polêmica do movimento olímpico", diz Kátia Rubio, professora da Faculdade de Educação da USP, lembrando que a judoca Edinanci Silva e a jogadora de vôlei Érika sofreram com o mesmo problema nos anos 1990. "Na época, elas passaram por processos cirúrgicos e nem sabiam o que estava sendo feito com elas".

As duas tinham condições genéticas que faziam o corpo produzir mais testosterona. Edinanci era intersexo, pessoa que nasce com características de ambos os sexos, e Érika tinha a Síndrome de Morris. Além de cirurgia, elas passaram a tomar medicação para controlar a carga hormonal.

Rubio coloca em dúvida esses testes porque, afirma, o determinante biológico hoje já não define o que é homem ou mulher.

"A identidade passa pela questão social. Tem de entrar nessa balança os argumentos sociais e psicológicos. No entanto, a discussão segue no âmbito biológico e, infelizmente, quem dá as cartas nesse contexto é a medicina, o que é um absurdo", desabafa. "A medicina usa um critério aleatório. Quem define que com 4 nanomol de testosterona eu sou mulher e com 5 eu sou homem?"

Rogério Friedman, professor titular da Faculdade de Medicina da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), vai na mesma linha. Ele diz que a "ciência é pobre" nas evidências sobre o tema e que, por isso, os testes atuais não são suficientes para resolver a questão.

"A ciência é pobre de quantidade e qualidade de evidências. Não há muita ciência e um pouco de preconceito permeia essa discussão. Essa questão não é técnica, científicas, mas filosóficas. E estamos falando de coisas muito raras, que mereciam mais investimento em pesquisa, para vermos o que é pertinente e o que não é. A ciência está devendo."

Ele afirma estranhar essa discussão em Paris, uma vez que a determinação de gênero por genotipagem (DNA) tinha sido abandonada pelo COI por não resolver a questão.

"Testes genéticos podem definir o sexo genético do(a) atleta, mas não definem gênero. Há décadas se fazia esses testes como critério, mas, já tem uns 20 anos ou mais, as regras descartaram esses testes. Até me surpreendi ao saber que a IBA ainda exigia isso", diz Friedman.

"Não está clara a situação da atleta da Argélia. Ela tem naturalmente mais hormônios e, como a Caster Semenya, podem exigir dela um tratamento para diminuir esses hormônios e ficar mais compatível com as outras atletas. Para alguns, esse tratamento é suficiente, mas, para outros, segue injusto para as outras atletas", diz Friedman, citando a meio-fundista sul-africana Caster Semenya, que possui a condição DDS (distúrbio de desenvolvimento sexual), que causa a algumas mulheres terem cromossomos XY e níveis de testosterona no sangue típicos de um homem, assim como Khelif e Edinanci.

Semenya também é intersexo e desde 2019 não compete nas distâncias de 400 m a 1.600 m porque a World Athletics instituiu uma política que exige que mulheres que têm altos níveis de testosterona tomem medicação para suprimir o hormônio se quiserem competir.

À agências internacionais, ela afirmou ter tomado a medicação por um período, mas parou, dizendo que isso "torturava" seu corpo. Ela contou ter ficado nauseada, deprimida e mentalmente exausta, além de ter dificuldades para dormir e experimentar ataques de pânico.

Leonardo Álvares, professor de endocrinologia do Centro Universitário São Camilo, também enfatiza que esses testes de gênero não são mais válidos, principalmente o de cromossomos.

"É sabido hoje que as mulheres cisgênero podem ter cromossomos XY. O cromossomo em si não define o gênero. Na grande maioria das vezes, as mulheres são XX, mas podem ser XY. O que vale é o teste no último ano da medição de testosterona, esse é o critério das mulheres trans também", explica Álvares, destacando que mesmo que a boxeadora argelina fosse mulher transgênero, ela poderia competir entre as mulheres cisgênero se tivesse feito o controle hormonal um ano antes.

Já o professor de ginecologista da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Raphael Câmara afirma que os testes são importantes para impedir que homens disputem contra mulheres e ganhem "uma vantagem absurda" e, em alguns casos, coloquem "em risco a mulher, como no boxe". Porém, ele ressalta que esse não parece ser o caso da boxeadora argelina.

Ele defende que, se a atleta tem níveis hormonais que a colocam em vantagem, ela poderia passar por um tratamento que a coloque no mesmo patamar das outras atletas.

"Como ela não é transgênero, qualquer remédio para diminuir os hormônios pode provocar malefícios para o corpo", alerta Câmara, explicando, porém, que essas atletas possuem um ganho natural de potência em relação às concorrentes.

"É difícil opinar sem saber os detalhes do caso, sem ver o prontuário da atleta, mas não há dúvida que tem um doping natural grande. Ela não tem culpa, mas isso provoca vantagem que as outras não têm, e em esportes de contato e de luta colocam em risco as outras atletas", afirma.

A professora Kátia Rubio acredita que essa discussão sobre testes de gênero ainda vai se estender por mais tempo devido ao aumento do número de pessoas que se identificam fora do binarismo.

"O COI tem sido ambíguo nas decisões. Para não se envolver, foi delegar às federações internacionais a decisão sobre o que se aceita como homem ou mulher. No caso do boxe é mais complicado porque a IBA está sob intervenção. O COI tinha de tomar uma decisão, mas ele escapa por esse argumento de ordem nacional", diz a professora, explicando que outro fator para essa polêmica é a falta de conhecimento das pessoas. "Estão confundindo atletas trans com intersexo, e tem muita gente falando bobagem."

A boxeadora irlandesa Amy Broadhurst, que enfrentou e venceu Khelif no Mundial de 2022, comentou o assunto nas redes sociais e defendeu a argelina.

"Muitas pessoas estão me mandando mensagens sobre Imane Khelif", disse ela. "Pessoalmente, não acho que ela tenha feito nada para 'trapacear'. Acho que é a forma como ela nasceu e isso está fora do controle dela. O fato de que ela já foi derrotada por nove mulheres antes diz tudo", disse a irlandesa, ao lado de um vídeo do combate entre elas.

Mesmo com a polêmica, Imane Khelif continua nos Jogos de Paris e enfrenta a húngara Anna Luca Hamori neste sábado (3), pelas quartas de final. Se vencer, já terá uma medalha assegurada.

Nascida em Tiaret (ARG) em 2 de maio de 1999, Khelif compete desde 2018. Em 2022, ela venceu os campeonatos Africano e Mediterrâneo e chegou à final do Mundial em Istambul (TUR), perdendo para Broadhurst.

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