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Nobel de Bob Dylan se sentiria à vontade no colo de Chico Buarque

Se o vencedor do Camões escrevesse numa língua menos secreta do que o português, poderia vencer o prêmio sueco

 
Bordado de Bel Moura, obra de 2018 que está na fotobiografia 'Revela-te, Chico' - Reprodução

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Embora a nota oficial distribuída pelo júri do Prêmio Camões fale em “transversalidade” de uma obra “multifacetada, repartida entre poesia, drama e romance”, não parece haver dúvida de que a maior honraria da literatura de língua portuguesa foi concedida muito mais ao compositor Chico Buarque do que ao escritor Chico Buarque: 85-15 parece uma divisão de mérito artístico até generosa com a parte escrita de sua obra.

Não há demérito nisso, mas deve-se ter cuidado com a ideia. As comparações inevitáveis com o prêmio Nobel de Literatura concedido em 2016 a Bob Dylan, também um artista popular do ramo musical, não fazem inteira justiça ao brasileiro. A relação de Chico com a palavra é bem mais ampla e “literária” do que a do compositor americano. 

A verdade é que Chico Buarque, vamos falar sério, parece muito menos surpreendente numa galeria de premiados que conta com Jorge Amado e Raduan Nassar do que Dylan numa festa de intelectuais frequentada por J.M. Coetzee e Mario Vargas Llosa. “Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar”, disse o compositor ao saber do prêmio. Isso se deve em parte, é claro, ao fato de Chico ser autor não só de textos para serem cantados, mas também de muitos que foram concebidos para a leitura silenciosa ou declamada. 

Alguém aí falou em “Tarântula”? Ora, o livrinho único de ficção experimental que Dylan publicou é uma curiosidade pálida quando comparado a uma obra que inclui diversos títulos de ficção e textos teatrais. Chico é mais escritor-escritor, não se discute. 

No entanto, ainda não será por isso —ou não só por isso— que o autor de textos teatrais como “Gota 
d’Água” e “Ópera do Malandro” e romances como “Budapeste” e “Leite Derramado” parece uma escolha natural para o Camões. 

A chave está mesmo na canção, no apuro do verso que, mal nasce, parece ter existido desde Camões —o poeta, não o prêmio. O poeta Antonio Cícero, um dos jurados, mencionou a sempre lembrada “Construção”, canção de 1971, como prova de que a discussão sobre letra de música ser ou não ser poesia é papo furado. 

De fato, “Construção” é um primor técnico com seus versos alexandrinos perfeitos, sua tônica na sexta e na 12ª sílabas, sua influência bem digerida das vanguardas poéticas brasileiras dos anos 1960. Material rico para teses acadêmicas, um critério de validação literária de peso. 

Contudo, a qualidade superior do cancioneiro de Chico vai além da capacidade que ele demonstra de manejar, como se os tivesse inventado, basicamente todos os recursos disponíveis no patrimônio acumulado pelos vates desde Homero.

O Camões destacou “sua contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”. Bingo. Mais do que qualquer outra qualidade, é esse alcance pan-lusofônico, a facilidade para atravessar fronteiras nas asas da canção popular, que torna Chico o poeta imenso que é.

Aí não tem jeito: a cordilheira imponente do cancioneiro buarquiano transforma em suave colina mesmo “Budapeste”, sua melhor obra de ficção, aquela em que o burilamento quase esteticista das palavras não leva a narrativa a escorregar aqui e ali, entre uma frase belíssima e outra, num tom artificioso ou mesmo, em momentos menos felizes, contrafeito. 

“Budapeste” é uma pequena joia, mas empalidece porque a obra poética construída pelo homem no profícuo (e já quase extinto) subgênero da canção popular conhecido como MPB é de tal grandeza que o situa, sem favor algum, no time titular dos maiores artistas da história da língua portuguesa. 

Um time de 11, digamos, para ficar num campo que lhe é familiar: Eça no gol, Machado com a 10, Pessoa se desdobrando em campo com a 8... Chico com a 11, como Canhoteiro. Exagero? Duvido. Futebol e arte são caixinhas de surpresas, mas não passará longe desse olimpo um sujeito que aos vinte e poucos tinha escrito “Pedro Pedreiro” e “Retrato em Branco e Preto” —e que não parou mais.

É provável que o alcance cultural das canções do Chico não seja suficientemente claro para os brasileiros das novas gerações. Essa apreciação ficou ainda mais difícil nos últimos anos, quando o apoio inabalável de Chico a um 

PT que caía em desgraça o transformou em Geni —sua personagem “feita pra apanhar, boa de cuspir”— aos olhos de metade do país.

Sendo assim, convém lembrar: quem viveu no Brasil das últimas décadas do século 20 cresceu com uma dieta musical variada no estilo, mas coerente no sempre fino padrão de feitura, em que a limpeza clássica do verso está a serviço de uma cultura da língua de rara riqueza, compartilhada entre erudição e ouvido atento ao agora.

Faço uma lista sem pensar muito: “Samba do Grande Amor”, “Uma Canção Desnaturada”, “João e Maria”, “Olhos nos Olhos”, “Vai Passar”, “Beatriz”, “Eu Te Amo”. Ao relê-la, me dou conta de que, como qualquer lista de canções do Chico, esta é repleta de obras-primas e de lacunas imperdoáveis.

Camões é pouco. Já seria se Chico Buarque tivesse parado de compor aos 35 anos, e ele já vai com 74 —compondo menos, mas compondo. “Caravanas” é um disco de respeito. Se escrevesse numa língua menos secreta, o Nobel de Dylan se sentiria à vontade em seu colo.

A obra de Chico Buarque

Chico Buarque de Hollanda (1966)
Primeiro disco de Chico, já trazia canções que virariam clássicos, como 'A Rita', 'A Banda' e 'Olê Olá'

Roda Viva (1968)
Estreia de Chico como dramaturgo. A peça, atualmente em cartaz no Teatro Oficina, se tornou um símbolo de resistência à ditadura. Na sua segunda montagem, um grupo de militantes de direita invadiu o teatro e espancou os artistas

Construção (1971)
Um dos discos mais famosos de Chico. A canção que dá título ao álbum é feita em versos alexandrinos perfeitos que terminam sempre com proparoxítonas

Sinal Fechado (1974)
Este disco trazia gravações como 'Sinal Fechado', em dueto com Paulinho da Viola, e a canção de protesto 'Acorda, Amor', que Chico assinava como Julinho da Adelaide, pseudônimo que adotou para escapar da censura

Ópera do Malandro (1978)
Outro dos sucessos de Chico no teatro, o musical é inspirado na 'Ópera dos Mendigos', de John Gay, e na 'Ópera dos Três Vinténs', de Bertolt Brecht

Budapeste (2003)
Este romance, sobre um 'ghostwriter' em crise existencial que se refugia no idioma húngaro, rendeu a Chico o Prêmio Jabuti de melhor romance em 2004

Leite Derramado (2009)
O livro rendeu ao músico o Jabuti de livro do ano de ficção em 2010, embora tenha ficado em segundo na categoria romance. A notícia gerou uma polêmica sobre as regras do prêmio no meio editorial. O editor Sérgio Machado chamou o Jabuti de 'concurso de beleza'

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