Ex-vendedor de picolé, Jeza da Pedra prepara disco com crônicas musicais do Rio

Ao lado do produtor Alexandre Kassin, rapper lança 'Jeza+Kassin' no segundo semestre

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

Mundos culturais e geográficos diversos originaram o EP “Jeza+Kassin” (Lab344), álbum que é a soma do produtor musical Alexandre Kassin, 45, com o rapper Jeza da Pedra, 35.

Os primeiros encontros entre os dois reduziram a distância. “Eu já era piradaço no álbum novo dele, ‘Relax’, e não sabia que ele gostava muito de funk”, conta Jeza.

Um dos músicos brasileiros mais influentes de sua geração, indicado ao Grammy Latino de 2018 por “Relax”, Kassin colaborou com álbuns de Caetano Veloso, Gal Costa e Los Hermanos. É o lado mais visível desse encontro. Ascendente no hip-hop carioca, Jeza é menos conhecido no resto do país e tem uma trajetória inesperada.

O rapper Jeza da Pedra
O rapper Jeza da Pedra, que prepara o EP “Jeza+Kassin” - Rodrigo Sombra/Divulgação

Na certidão, ele é Jonatas Rodrigues, nascido e criado até a adolescência no complexo da Pedreira, na zona norte do Rio de Janeiro. O rapper vive hoje na zona oeste, em Campo Grande. Seu pai, metalúrgico, morreu de cirrose aos 33 anos; o filho tinha apenas sete anos e guardou memórias da admiração paterna por Tim Maia. Sua mãe, caixa de padaria, era fã de Roberto Carlos antes de ser neopentecostal e converter-se ao cantor gospel J. Neto.

“A minha família cresceu na igreja Assembleia de Deus. Quando eu vi que era diferente, que gostava de homem e isso não era aceitável naquele círculo, fiquei perdidão”, conta Jeza. “Até os 19 anos, eu ainda acreditava no inferno."

Graças à Associação São Martinho, que introduzia adolescentes em situação de risco no mundo do trabalho, ele estudou inglês e frequentou a Escola de Música Villa-Lobos. Novo lance de dados e, para sobreviver, o garoto caiu em inúmeras virações.

Num currículo sem censura, Jeza foi office boy, agente de turismo no porto, operador de telemarketing, michê de sauna, cantor de bar, animador de karaokê, sub-gerente de motel, concierge de hotel cinco estrelas, pesquisador do IBGE, tradutor, escritor e, ainda outro dia, vendedor de picolé no Vidigal.

Estimulado por um namorado americano, o rapper fez cursos de civilização francesa na Sorbonne e estudou letras na PUC-RJ. À época, ele falava sobretudo em poemas e romances ainda não escritos, hipnotizado pelas obras completas de Oscar Wilde. Uma narrativa de seus passeios sexuais saiu na revista de arte erótica “Nin” (nº 2).

“Wilde teve um dedinho na formação do meu caráter artístico. Consigo aproveitar a ideia do hedonismo, mas meus problemas são viver e tentar fazer arte sendo pobre e fodido”, afirma. Fixado na paixão musical a partir de 2015, o ano de seu single “Sai que Tu É Mó Bad”, ele lançou  em 2017 o EP “Pagofunk Iluminati”, produzido por Juan Peçanha, com o hit “Terrorista Viado”.

Ao ouvir “Pagofunk”, Kassin logo se lembrou de suas bases com percussão e sintetizadores para um projeto futuro. Foi a um show do rapper e assegurou-se de que encontrara o parceiro ideal para desenvolver aquelas ideias num álbum conjunto.

“Estava bastante apreensivo porque a gente é de universos bastante diferentes. Não sabia nem se Jeza conhecia minha música ou se ele sabia quem eu era. Mas ele conhecia e não achou que eu era um cara esquisito”, sorri Kassin, reconhecendo-se no humor do amigo.

Em junho do ano passado, o produtor musical começou a apresentar as bases adiante letradas pelo rapper. Em reuniões matinais, no estúdio, discutiam os resultados.

“Começamos a compor antes das eleições de 2018. Tem muito dessa vibração doida”, confessa Jeza, num café perto do Largo do Machado, no Rio de Janeiro. A letra de “Pedra do Sal” absorve o clima político: “O sangue vai fervendo e o tamborzão batendo, vai crescendo, o ódio vai crescendo”.

“A minha voz não é de cantor. Até daria pra fazer um disco, mas ficaria aquém do resultado. Jeza consegue expressar uma verdade que, de algum jeito, em mim soava falso, talvez por ser branco”, avalia Kassin.

O diálogo com a musicalidade afro-brasileira se firmou. “As pessoas fazem pouca programação com jongo. É uma coisa bacana de trazer pro dia de hoje, porque a gente precisa tocar no assunto das religiões afro-brasileiras, da africanidade no Brasil”, avalia Kassin. O álbum completo deve sair no segundo semestre e resultar em shows.

Com 16 composições prontas, os dois partilharam a proposta de realizar crônicas musicais. O Rio contemporâneo emerge fortemente em três faixas: “Pedra do Sal”, “IH CRL” (inspirada no funk proibidão) e “Lajão do Final Feliz” —e nem a única romântica, “Escuta”, se distancia da atmosfera musical suburbana.

Em “Lajão”, as viagens entre os vários mundos da metrópole: “Parto da Pavuna, a última estação, com um vão entre a Pavuna e o meu coração, em tupi Pavuna significa buraco de escuridão”.

“A música mexe com nosso lado sensível e não precisa de palavras para evocar memórias. Kassin foi uma musa também”, reconhece o rapper.

Jeza repõe o boné e se despede para mergulhar na estação do metrô, descer na Central do Brasil, pegar um ônibus para Deodoro e, de lá, mais outro para longe.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.