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Beirute não existe mais, dizem artistas que querem retratar tragédia da cidade

Sem apoio financeiro do governo, reconstrução de vida cultural da capital libanesa é capitaneada por ONGs

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São Paulo

Dias depois das imensas explosões que atingiram o porto de Beirute no início de agosto, o artista plástico Marwan Rechmaoui foi até a galeria que o representa, mas ela não estava mais lá. Boa parte dos 1.200 metros quadrados do lugar foram pelos ares com o impacto dos estouros, que estilhaçou as janelas e jogou algumas paredes no chão.

Rechmaoui conta ter chorado e sentido calafrios ao chegar na Sfeir-Semler, onde tinha visto sua obra —que lida com a identidade e a arquitetura da capital do Líbano— ser exposta várias vezes. Em meio à tristeza, juntou destroços como armações de metal e cacos de vidro e organizou tudo num canto, com a ideia de fazer uma mostra ainda neste ano em que vai exibir alguns de seus trabalhos antigos ao redor dos detritos.

"A cidade inteira está deprimida. Ainda é difícil entender a magnitude do trauma", afirma Rechmaoui, um dos principais nomes das artes plásticas do Líbano, em referência às explosões que devastaram bairros inteiros de Beirute e deixaram quase 200 mortos e 300 mil desabrigados.

“Desde 2008, 2009, as pessoas começaram a sentir um declínio —como sentimento, não como fato. Agora, as explosões me asseguraram que Beirute não está mais lá, e que uma nova cidade está surgindo. Não que o novo seja necessariamente melhor. Vamos ver o que podemos fazer."

Autor de peças que já passaram pela Bienal de São Paulo e estão nas coleções permanentes da Tate Modern, em Londres, e do Centre Pompidou, em Paris, o trabalho do artista tem uma mórbida semelhança com as imagens dos prédios arrasados pela explosão.

Uma de suas obras mais conhecidas, “Monumento para os Vivos”, feita entre 2002 e 2008, é um esqueleto de concreto de cerca de dois metros de altura com pequenos quadrados vazados em sua estrutura, representando uma construção que ficou inacabada por décadas em Beirute.

A torre Burj al-Murr, um dos edifícios mais altos da cidade, com 34 andares, foi planejada para abrigar um centro comercial. Começou a ser erguida em 1974, mas teve as obras interrompidas meses depois, quando estourou uma guerra civil que se arrastaria pelos próximos 15 anos no país.

O esqueleto de concreto passou a ser usado como posto de observação de atiradores durante o conflito, já que sua altura permitia monitorar o movimento da capital. "Eu já fiz um trabalho sobre a explosão", ele afirma, acrescentando que a tragédia de agora deve ser incorporada à sua obra futura.

Pelo menos cinco galerias de arte que ficavam próximas ao armazém com nitrato de amônio que pegou fogo e provocou o acidente foram atingidas, oito museus sofreram danos em graus diversos e centenas de obras se perderam. Artistas e galeristas estão em choque, tentando se reconstruir numa capital que virou um canteiro de obras.

Segundo galeristas e diretores de museus, as explosões no porto foram a gota d'água num país arrasado por uma crise econômica que se arrasta há anos e pela pandemia do coronavírus, que fez desabar o número de visitantes nos espaços culturais. A instabilidade política também não ajuda —o Líbano se encaminha para seu quarto primeiro-ministro em menos de um ano.

No museu Sursock, um palacete do início do século 20 responsável pela principal coleção de arte moderna e contemporânea do Líbano, o teto de algumas galerias desabou, os vitrais foram quebrados e 50 obras sofreram danos, diz a diretora, Zeina Arida. O espaço havia reaberto em 2015, depois de dez anos fechado e outros dois de reforma.

Segundo ela afirmou em uma live promovida pela Unesco com representantes das artes plásticas do país, o dinheiro, que já estava curto, agora terá que ser usado para reconstruir o prédio, destruído numa explosão que, dizem, foi mal explicada pelo governo para os habitantes.

Na mesma transmissão, a diretora do Conselho de Museus do Líbano, Anne-Marie Maïla Afeiche, expôs uma preocupação extra —que a reconstrução dos museus não seja vista como prioritária, mesmo que essas instituições tenham um importante papel a desempenhar em termos de coesão social e de educação para os jovens, ajudando a criar um sentimento de cidadania e de pertencimento a um país. "Temos que evitar que os museus morram ou caiam na letargia”, afirmou.

Outro lugar atingido foi uma sala refrigerada onde estava parte do acervo de 500 mil fotografias da Fundação da Imagem Árabe, instituição que armazena e estuda a história fotográfica do Oriente Médio. Por sorte, o arquivo ficou intacto e foi em seguida transferido para outra sala, conta o artista e cineasta Akram Zaatari, um dos fundadores. Os diretores estão agora decidindo se vão reconstruir o espaço ou mudar tudo para uma nova sede.

Assim como boa parte dos artistas contemporâneos do Líbano, Zaatari também aborda, em sua obra, uma cidade que sofreu inúmeros conflitos políticos e militares ao longo da história, eternamente destinada a se reconstruir e a negociar a paz. No vídeo "Beirut Exploded View", de 2014, por exemplo, o artista mostra uma série de edifícios inacabados ou parcialmente destruídos próximos ao centro de Beirute.

Por este grande entulho urbano vagam homens mudos, como trabalhadores da construção civil desocupados e policiais que aparecem do nada —a comunicação entre eles se dá só por mensagens de celular. E então a monotonia é cortada por uma explosão de fogos de artifício no céu da cidade.

Diante da crise econômica e do Estado colapsado, não há previsão de ajuda financeira do governo para o setor artístico, afirma Zaatari. O movimento de reestruturação está sendo capitaneado por duas ONGs, o Fundo Árabe para a Arte e Cultura e a Recurso Cultural, que lançaram campanhas internacionais de arrecadação de dinheiro e conseguiram captar até agora US$ 1 milhão, ou cerca de R$ 5,5 milhões, para distribuir entre 70 organizações e 200 profissionais.

Há ainda um movimento que vem das próprias galerias. Dedicada a mostras de arte contemporânea, a Tanit está vendendo 80 obras para angariar fundos para a reconstrução —sua sede foi arrasada, junto com a quase totalidade dos trabalhos de uma exposição do libanês Abed Al Kadiri que havia sido inaugurada para o público no dia anterior às explosões.

A reconstrução física dos espaços de arte incorre ainda em outra dificuldade —o limite de saque de US$ 500, ou cerca de R$ 2.700, por semana. O teto foi imposto pelos bancos aos correntistas a partir do momento em que a crise no país se acentuou, no final do ano passado. Isso dificulta o pagamento de serviços caros como a reposição de janelas, conta Zaatari, já que os fornecedores costumam cobrar metade do valor da obra em dinheiro vivo.

Nos três dias seguintes à tragédia, Zaatari diz ter considerado deixar o país, mas desistiu da ideia ao começar a recobrar sua razão, cerca de uma semana mais tarde. Ele relata ter se sentido desorientado e vivido um luto muito forte no primeiro mês.

“Você acorda realmente no 40º dia. Agora estou trabalhando normalmente, mas a cidade não é mais a mesma.”

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