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Saiba por que os Stones não estão tocando 'Brown Sugar', sobre escravidão, em shows

Música está de fora da turnê que banda faz agora, sua primeira ausência prolongada desde que foi lançada, em 1969

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Dean Goodman
Los Angeles

Os Rolling Stones pararam de tocar "Brown Sugar" nos shows, deixando um de seus maiores sucessos em banho-maria em meio à onda do politicamente correto que varre boa parte do Ocidente hoje.

A banda de rock não incluiu o sucesso sobre sexo, drogas e escravidão nos últimos quatro shows que apresentou na sua turnê americana, iniciada em Saint Louis em 26 de setembro. Isso marca a primeira ausência prolongada de Brown Sugar do repertório da banda desde que ela foi lançada, há 52 anos, em 1969. (A banda também pulou a música num show numa festa privada realizada pouco antes do começo da turnê.)

Mick Jagger, os guitarristas Keith Richards (dir.) e Ronnie Wood (esq.) e, atrás, o baterista americano Steve Jordan se apresentam no show dos Rolling Stones no The Dome, no estádio do America's Center, em St. Louis, no Missouri - Kamil Krzaczynski - 26.set.2021/AFP

Uma porta-voz dos roqueiros britânicos não retornou um email pedindo comentário, e o vocalista Mick Jagger, autor da letra e da melodia, não explicou a ausência da canção em nenhum dos shows até agora.

Mas o guitarrista Keith Richards comentou brevemente sobre o sumiço numa entrevista durante o final de semana. "Estou tentando entender com as irmãs qual é o problema. Não entendem que a música é sobre os horrores da escravidão? Mas estão tentando enterrar isso", disse ao jornal Los Angeles Times. "No momento, não quero entrar em conflito com toda essa merda. Espero que a gente consiga ressuscitar isso em sua glória em algum momento."

Na mesma entrevista, Jagger tentou pôr panos quentes e não descartou sua volta. "Às vezes você pensa, 'Vamos tirar essa canção agora e ver como vai.' Podemos a trazer de volta."

A omissão de "Brown Sugar" também não foi mencionada pela imprensa, com os críticos invariavelmente focando a morte recente do baterista Charlie Watts e a energia de Jagger. Mas fãs da banda começaram a levantar suspeitas sobre o assunto no primeiro show, e eles só têm ficado mais ansiosos desde então.

Os Stones tocaram "Brown Sugar" 1.136 vezes, segundo o portal Setlist.fm. A única música mais apresentada é "Jumpin' Jack Flash", com 1.171 performances.

A história da letra começa com um traficante de escravos que chicoteia uma escrava que é sua propriedade, progride para um encontro entre uma britânica e o jovem e vigoroso escravo que é seu amante e conclui com o narrador se gabando de suas próprias habilidades com uma mulher negra.

O refrão inclui o verso "brown Sugar, how come you taste so good", ou açúcar mascavo, por que você é tão saboroso, embora Jagger às vezes substitua "saboroso" por "talentoso". Já a referência ao ato de chicotear ele parou de cantar anos atrás. Em inglês, açúcar mascavo também têm um outro significado além da alusão à sua cor —é uma gíria para heroína.

"Nunca escreveria essa música agora", disse Jagger ao editor da revista Rolling Stone, Jann Wenner, em uma entrevista de 1995. "Provavelmente me censuraria. Pensaria 'não posso passar desse ponto, não posso escrever algo rude desse jeito'."

Mesmo assim, o vocalista continuou a cantar a música em praticamente todos os shows que a banda deu até 2019, quando aconteceu a última turnê deles, em Miami. Mas o assassinato de George Floyd, um jovem negro americano, por um policial em maio do ano passado provocou uma onda de protestos e um reexame severo de como os negros são tratados hoje, em especial nos Estados Unidos e no Reino Unido. Estátuas foram tombadas, e referências culturais datadas sobre negros e a guerra civil americana foram expurgadas. Isso tudo na esteira do MeToo, movimento contra o assédio sexual que eclodiu em 2017.

É difícil não encontrar letras potencialmente problemáticas em muitas músicas pop, sobretudo naquelas dos Rolling Stones. Eles ainda tocam nos shows "Midnight Rambler", sobre um stalker que leva uma faca consigo, "(I Can't Get No) Satisfaction", sobre menstruação, e "Start Me Up", sobre ejaculação masculina post-mortem. Músicas feitas por seus heróis do R&B e do blues também são crivadas de insinuações sexistas, embora esses alicerces da cultura musical tenham escapado do duro revisionismo do século 21 até agora.

"Me preocupo com a ideia de que o clima de censura atual prive o mundo de muita música boa", diz Ethan Epstein, de 35 anos, que assistiu a mais de 40 shows dos Rolling Stones em oito países. “É isso que é uma droga em relação ao fim de 'Brown Sugar'. É uma ótima canção."

Epstein afirma que é "absurdo" aventar que "Brown Sugar" glorifica a escravidão. Segundo ele, a letra faz uma "analogia brilhante entre a escravidão e o vício em drogas".

O pesquisador americano Martin Elliott, autor de "The Rolling Stones Complete Recording Sessions", diz que os vocais integram o ritmo da música, e os fãs não ficam escrutinando as letras de cada canção quando vão a um show da banda, sobretudo se a sua primeira língua não for o inglês.

“No que se refere a 'Brown Sugar’, a letra da música deveria ser usada para educar. Elas não podem ser expurgadas e erradicadas. Não devemos apagar a história", afirma, por email.

Embora os Stones estejam com frequência envolvidos em polêmicas, muitas delas são manufaturadas, e a letra de "Brown Sugar" mal chamou a atenção nas últimas décadas. Mesmo quando Jagger improvisou um "'Brown Sugar', fique de joelhos" em uma transmissão televisionada no Reino Unido em 1971, nenhum cidadão engajado pareceu ter se incomodado. Os únicos que se ofenderam foram os chineses. Censores comunistas puseram "Brown Sugar" numa lista proibida junto com outras músicas nas duas vezes em que os Stones tocaram lá recentemente.

Os integrantes da banda não são estranhos à autocensura. Eles transformaram seu hit "Let's Spend the Night Together", vamos passar a noite juntos, em "Let's Spend Some Time Together", vamos passar um tempo juntos, quando o apresentaram num programa de TV americano em 1967. Da última vez em que tocaram a picante "Some Girls", de 1978, Jagger deixou de lado a estrofe que diz "black girls just wanna get fucked all night", ou meninas negras só querem transar a noite toda.

A ausência de "Brown Sugar" no repertório exacerbou a agressividade dos fanáticos pelos Stones, ainda de luto pela morte de Charlie Watts e inseguros em relação à decisão da banda de continuar sem ele. Alguns atacaram a banda e demais fãs nas redes sociais.

O proprietário de um site popular sobre os Stones, Iorr.org, se viu forçado a banir todas as referências ao drama porque estava cansado de passar horas por dia removendo postagens com xingamentos e ameaças.

O proprietário, Bjornulf Vik, um avô noruguês que diz ter visto mais de 500 shows da banda desde 1973, não se perturba com a controvérsia. "Pessoalmente, não sinto falta nenhuma de 'Brown Sugar'. Nem penso sobre isso."

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