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Mito de Kassandra ganha releitura em ópera sobre a luta contra a solidão

Protagonizada por uma mulher trans, obra é centrada na tragédia de quem vive o desespero de não ser ouvido

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André Heller-Lopes
Rio de Janeiro

Filha de reis, profetisa a quem Apolo deu o dom da profecia em troca do amor, Kassandra tentou avisar aos troianos o que iria acontecer caso levassem o cavalo de madeira para dentro das muralhas.

Porém, como ela não entregou seu amor como prometera, o deus fez com que ninguém acreditasse nas suas profecias. Tantos séculos depois, Kassandra é uma personagem que une os tempos, a estes transpassando e transgredindo.

Soprano Maria Castro de Lima na ópera 'Kassandra', de Sergio Blanco - Lucía Rivero/Divulgação

Não sou homem, não sou mulher, sou Kassandra", ela canta. E a voz que escutamos é de uma artista migrante em terra e no corpo: a cantora María Castillo de Lima na ópera Kassandra, no Teatro Colon de Buenos Aires.

Nascida em São Paulo, filha de um pedreiro argentino e uma cozinheira brasileira, cresceu em La Plata e ingressou em 2010 no coro do Teatro Colón, como tenor (voz mais aguda masculina). Um ano depois, após sua transição, conseguiu a proeza de mudar para o naipe de soprano (mais aguda voz feminina).

Sua voz de cantora transgênero é produto de uma migração, e o instrumento de Maria Castillo de Lima tem algo de singular: diferente de "sopranistas" (como o brasileiro Bruno de Sá, que faz importante carreira na Europa) ou de contratenores (homens que desenvolvem a voz de falsete), ela consegue manter uma voz forte, com cores escuras de mezzo-soprano, enorme e de impacto dramático sem "quebras" entre o novo registro de soprano e a antiga voz de tenor.

No ir e vir temporal da história que interpreta, entre o mito e os acontecimentos atuais, usa com igual facilidade suas vozes feminina e masculina.

É assim que, nessa nova ópera do compositor argentino Pablo Ortiz e do dramaturgo uruguaio Sergio Blanco (no Brasil suas obras têm sido cada vez mais representadas: "Tráfico", "A Ira de Narciso", "Tebas Land" etc) acrescenta-se ao mito uma nova página —contemporânea e importante— dando a voz de uma mulher-trans à profetisa grega.

Sozinha no cenário e luz sensível de Gonzalo Cordova que evocam um bar vazio entre luz e sombras, essa Kassandra caminha num chão de mosaicos preto e branco —metáfora ao mundo binário que ela desafia?— como no tabuleiro de xadrez de sua vida.

Pesadas botas masculinas misturam-se com tecidos dourados e leves no figurino imaginado por Luciana Gutman. Tudo afirma que a tragédia dessa Kassandra não é a guerra, sempre um substantivo masculino, mas sim a luta contra a solidão e o desespero de quem precisa ser ouvida.

Ela precisa contar uma verdade que outros parecem se recusar a aceitar, numa inevitável analogia ao que passam as pessoas trans na América Latina e pelo mundo afora ao demandar o simples direito de existir —destino que compartilha com mulheres oprimidas por regimes teocratas ou comunidades perseguidas pela sua liberdade de amar.

Num inglês propositadamente torto, de refugiada, de sobrevivente, de trabalhadora do sexo, Maria Castillo de Lima canta durante uma hora a ligação de sua própria história a de Kassandra.

A música de Pablo Ortiz coloca-se, assim, a serviço do texto de Blanco e da encenação de Diana Theocharidis e Alexandros Efklidis, num espetáculo eficaz e arriscado que tem ao menos três notáveis momentos de estranha, inusitada delicadeza e criatividade. Primeiro, quando a profetisa divide conosco a dor de sua mãe quando pensou que seu filho homem havia deixado de existir na transição para mulher; depois, o diálogo de Kassandra com o Pernalonga (sim, o dos desenhos animados); por sim, uma antológica cena em que Maria Castillo conversa com uma dezena de vibradores, dos mais diversos tamanhos e cada um representando um dos homens que passou pela sua vida.

Da música em si, essencialmente tonal e muito bem pensada do ponto de vista de escrita vocal, pode-se dizer que enfatiza o espaço de uma Kassandra que está à deriva, sem um futuro para prever e esperando a chamada de um cliente, Monsieur Flaubert, que lhe pagará US$ 40 por uma noite de sexo.

Assim, um quarteto instrumental (violino, violoncelo, clarinete, percussão) regido de longe pela maestra Eduviges Picone, alternam-se momentos líricos com sons de música eletrônica, passagens de rádio operados por um computador e, claro, a voz falada e cantada de Maria Castillo.

"Kassandra" prova que nada é preto ou branco e a importância de estimular-se o acesso de todos a todo tipo de cultura. A ópera, em especial, é uma catedral de sensações; temos apenas de saber que a todos é permitido olhar para os céus e sentir o divino.

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