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Como recuperar a educação moral e cívica sem lesar a democracia

Professor defende cooperação entre docentes civis e as Forças Armadas

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Antonio Carlos Will Ludwig

[resumo] Autor analisa o crescente apelo à educação militar no país e apresenta sugestões de cooperação entre professores civis e as Forças Armadas com vistas a aperfeiçoar a formação dos alunos, sem que se abra mão dos valores democráticos

Desde 2017, são elaboradas em redes escolares propostas relativas ao ensino e à aprendizagem de moral e civismo. O presidente Jair Bolsonaro e seu vice já se manifestaram favoráveis ao tema, bem como defenderam a replicação de colégios militares em todo o país. Em janeiro, por meio de um decreto, foram criadas as escolas cívico-militares. 

Este retorno inesperado causa muita surpresa, uma vez que o último surto de moral e civismo, ocorrido entre as décadas de 1970 e 1980 do século passado, não deixou nenhum resquício de saudade.
Embora possa ser dito que esta volta se deve às intenções que são próprias dos atuais governantes ou de que ela se mostra como uma reação ao estado de degradação ética pelo qual passa nosso país, não é válido asseverar que ambos os motivos são suficientes e esgotantes. 

A educação moral e cívica é uma área situada no campo da formação política, especialmente no que diz respeito ao preparo para o exercício da cidadania conforme prevê a finalidade da educação inclusa na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Vale dizer que ela tem por escopo a internalização de certos valores imprescindíveis à vida em sociedade, dentre os quais se destaca o civismo. Observe-se que o comportamento cívico diz respeito ao ato de dedicação ao interesse coletivo, por oposição ao interesse particular.

Este ato tende a ocorrer no âmbito da esfera pública, setor da vida em sociedade acessível a todas as pessoas, em que predomina o interesse geral, em que a visibilidade e a transparência são ampliadas significativamente. Nela valem o diálogo, a comunicação, o discurso, a argumentação e a ação conjunta. 
Na esfera pública emerge a figura do cidadão ativo, ou seja, do indivíduo que não aceita ser apenas governado, pois seu desejo principal é ser governante. O cidadão ativo, além de lutar por seus direitos e interesses, empenha-se muito em ações individuais e grupais beneficiadoras da coletividade, principalmente aquelas relacionadas aos direitos outorgados e as que favorecem segmentos desprivilegiados da sociedade. 

A história revela que a educação moral e cívica em nosso país despontou em fins do século 19, através de um parecer emitido por Rui Barbosa. A partir daí, surgiram outros momentos específicos: a reforma proposta pelo ministro da Educação Gustavo Capanema durante o Estado Novo, quando apareceu incluída em uma lei orgânica; o decreto emitido por Jânio Quadros no decorrer de sua administração; os governos militares que a atrelaram à Lei de Segurança Nacional; e quando foi remetida para a área de ciências sociais e humanas em 1993, em caráter optativo.

Apesar de bastante antiga e ter estado presente no decorrer de todo o processo evolutivo da educação, constata-se que nossos professores nunca concederam a ela a atenção merecida. Com efeito, as pesquisas e publicações sobre a educação moral e cívica são escassas, praticamente inexistem propostas metodológicas elaboradas e praticadas por docentes, e a atual reforma do ensino, apesar de prever um conjunto de atitudes e valores que devem ser internalizados pelo aluno, quase nada dispõe para a área da formação cívica. 

A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio é omissa quanto ao tipo de cidadão a ser formado e, consequentemente, não delineia nenhuma estratégia voltada ao seu preparo. 
No decorrer do tempo, os profissionais da educação passaram a solicitar ou aceitar contribuições nesta área advindas das Forças Armadas. No início do século 20, emergiram nas escolas-modelo e nos grupos escolares do estado de São Paulo os denominados batalhões infantis, que se mostravam muito semelhantes aos agrupamentos castrenses, porquanto tinham os militares como instrutores. 
Logo após o término da Primeira Guerra, surgiu a prática do escotismo, também sob a direção de militares. Ao seu lado foi introduzida a alcunhada linha de tiro destinada aos alunos dos ginásios, escolas normais e profissionais. 

Em fins da Segunda Guerra, e por ela influenciada, instituiu-se a meta de forjar a consciência patriótica dos alunos, juntamente com o apreço ao dever militar. Oficiais das Forças Armadas foram mobilizados para colaborar. No decorrer dos governos militares, criou-se no Ministério da Educação e Cultura a Comissão Nacional de Moral e Civismo, cuja finalidade era fazer a articulação com as autoridades civis e militares em todos os níveis de governo, com vistas à implantação e manutenção da doutrina da educação moral e cívica.

Atualmente, além da pretensão de incluir a educação moral e cívica na grade curricular, almeja-se replicar em todo o país as chamadas escolas cívico-militares, que dizem respeito a um padrão de estabelecimento educativo civil semelhante ao modelo próprio dos colégios militares. 
Em relação ao modelo de escola militar, cabe destacar dois aspectos. Um deles se refere ao estilo administrativo empregado. Aplicado em todos os setores das Forças Armadas, apresenta-se na forma de uma pirâmide em cujo ápice se encontra a autoridade máxima. Caracteriza-se pela unidade de comando, pela autonomia operatória setorial e pela possibilidade do uso de consultas aos subordinados hierárquicos.  

É considerado o estilo mais antigo e mais simples de que se tem conhecimento. Mostra-se apropriado para o desenvolvimento das atividades rotineiras da caserna, além de adequado à tarefa de mobilização e deslocamento de tropas tanto na paz quanto na guerra. 
O segundo diz respeito à concepção didática adotada. Ela fundamenta-se na pedagogia tecnicista que se assenta nos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade. Tal como o estilo administrativo, a pedagogia tecnicista é consoante aos requerimentos das atividades militares, as quais exigem profissionais dotados de elevado grau de perícia.  

O estilo administrativo voltado às escolas civis é a gestão democrática, que utiliza o processo decisório baseado na busca do consenso ou no voto da maioria. Essa forma de gestão contribui para a permanência do aluno na escola, fortalece o compromisso com sua própria formação, confere ajuda ao desenvolvimento de várias atitudes desejáveis e favorece o preparo para o exercício da cidadania ativa. 
A gestão democrática é de fundamental importância para o amparo da continuidade e do vigor da democracia social, que, por sua vez, é essencial para a manutenção do Estado democrático. Deve ser preservada, ampliada e jamais substituída. Quanto à pedagogia tecnicista, seu uso pode ocorrer, porém não de modo massivo e exclusivo, visto que aloja a inverídica concepção da neutralidade científica, não tem conexão com a proposta política de transformação social e retira a autonomia do professor.  

Levando em conta a ideia de sociedade educadora, pode-se dizer que essas observações não servem para impedir os préstimos oriundos das Forças Armadas ao ensino básico civil. Assim sendo, na área da formação moral e cívica pode haver uma importante colaboração delas. A deferência por parte dos militares à “res publica” no interior da caserna é um evento que merece atenção. 

Com efeito, eles exibem notório zelo para com o patrimônio nacional. Alunos civis, em visitas a estabelecimentos militares, terão a oportunidade de observá-lo. A área das operações cívico-sociais também é muito relevante. Neste caso, além de observarem o trabalho humanitário por posto em prática, os alunos podem participar como voluntários.  

Na esfera do ensino profissional pode ocorrer outra importante contribuição. A esse respeito é sabido que os estabelecimentos castrenses possuem em múltiplos locais do país instalações diversificadas e espaços apropriados que agregam técnicos especializados e equipamentos. 

Encontram-se, portanto, reunidos todos os recursos necessários para o planejamento e o oferecimento de cursos profissionalizantes aos discentes do ensino médio. Entretanto, é imprescindível destacar que tais cursos devem ser pautados pela valorização da competência técnica ampliada, em aproximação ao conceito de polivalência, que enfatiza a internalização de um vigoroso senso crítico voltado principalmente para a organização do trabalho na sociedade atual —o que se mostra sintonizado com a concepção de cidadania ativa aqui pleiteada.

Ocasionalmente, os militares também podem ser convidados para fazerem palestras sobre temas específicos e participarem de comissões organizadoras nas escolas paisanas relacionadas a eventos variados. Por sua vez, os comandantes das unidades bélicas sediadas em muitas cidades podem disponibilizar aos discentes das instituições civis suas praças esportivas e seus instrutores, bem como facultar a eles os préstimos dos músicos integrantes das bandas utilizadas nas atividades rotineiras de treinamento.

Apesar de ser bem-vinda a colaboração dos militares na área da educação moral e cívica pertinente às duas sugestões feitas anteriormente, ressaltamos que o protagonismo em tal área cabe aos professores civis. 

Urge, portanto, que os mesmos abandonem imediatamente a atitude de relegar ao segundo plano essa educação, manifestação que persiste há muitas décadas. 


Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, tem pós-doutorado em educação pela Universidade de São Paulo e é autor de “Democracia e Ensino Militar” (Cortez Editora) e “Conservadorismo e Progressismo na Formação Docente” (Pontes Editores).

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