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Quilombo que inspirou 'Torto Arado' sofre com violência

Comunidade no interior da Bahia foi visitada por Itamar Vieira Junior quando trabalhava no Incra

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Tayguara Ribeiro

Na Folha desde 2019, atuou em Política, Economia e no jornal Agora. Pós-graduado em Política e Relações Internacionais

Fernanda Mena

Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

[RESUMO] Comunidade quilombola que serviu de inspiração para trama e protagonista do romance "Torto Arado" relata casos de ameaças, violência e assassinatos nos últimos anos. Iúna, no interior da Bahia, entrou na rota do tráfico de drogas após vendas ilegais de terrenos e disputas por regularização de terras, outro espelhamento com o livro de Itamar Vieira Junior, que retrata como a ordem fundiária colonial se perpetua no país.

Na zona rural da cidade de Lençóis, no interior da Bahia, fica o quilombo de Iúna, uma das comunidades que inspiraram o maior sucesso literário brasileiro dos últimos anos: o livro "Torto Arado", publicado em 2019 por Itamar Vieira Junior.

O best-seller premiado aborda as crenças, as tradições e os desafios cotidianos vividos por trabalhadores que cultivam uma terra da qual nunca são proprietários, situação decorrente de uma ordem social colonial que inaugurou os conflitos fundiários do país, presentes até hoje. Um caso em que a arte imita a vida, e a vida imita a arte.

Sede da associação do quilombo Iúna, na Bahia, uma das comunidades que inspiraram o livro 'Torto Arado' - Arquivo Pessoal

No quilombo de Iúna, onde cerca 58 famílias moravam até poucos meses atrás, a professora Iracema Nascimento, 51, cuja história ajudou a dar vida a uma das protagonistas de "Torto Arado". "Eu sou a Bibiana", diz em referência à personagem do livro.

Principal liderança da associação quilombola local, a professora não está mais em Iúna. Ela relata que tem recebido ameaças. E, no dia 27 de janeiro deste ano, a casa em que morava na comunidade pegou fogo. Ela suspeita que tenha sido um ato criminoso. A polícia investiga o caso.

"Foi um atentado mesmo. Se fosse roubo teria sentido falta de alguma coisa. Foram meus alunos, estudaram comigo. Eu não sei a motivação, por isso tenho medo", diz Iracema. "Dá um nó na mente da gente. Choro de vontade de ir na minha comunidade e não posso."

Itamar Vieira Junior, conheceu a comunidade de Iúna em 2013, quando trabalhava no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Essas visitas o inspiraram a produzir um projeto de doutorado e, posteriormente, a retomar um livro inacabado de sua adolescência, que viria a se tornar "Torto Arado".

"Eu próprio já recebi ameaças veladas, de fazendeiros", conta o escritor. "Descobriram meu telefone, ligavam para tentar me deixar com medo. Não foi muito tranquilo o trabalho. Nunca é tranquilo. Mas em Iúna foi especialmente pesado."

Como parte de sua atuação no Incra, Itamar participou do estudo antropológico da comunidade, uma das etapas de análise do direito daquele grupo de moradores ao território que ocupam.

"Nosso trabalho é justificar a regularização fundiária. Como aquelas famílias chegaram ali? De que maneira elas se relacionam com a terra?", explica o escritor e geógrafo baiano. "O pioneiro em Iúna foi um senhor chamado Marcelino. Ele chegou com 17 anos para trabalhar ali. E, ao longo de cinco décadas, chegaram muitos outros trabalhadores."

Segundo Itamar, esse era um um tipo de trabalho "que é escravidão, porque eles não recebem nenhum salário". É um sistema em que se concede apenas a moradia. "A pessoa trabalha para o proprietário e, às vezes, tem o fim de semana livre para cultivar um pouquinho de coisa para sua subsistência."

Sobre a violência em Iúna, que já partiu dos fazendeiros locais contra a comunidade quilombola, mas que agora parece vir de pessoas da própria localidade, o autor diz que os quilombos, em geral, são lugares de acolhimento e solidariedade, mas que, ao longo do tempo, outras pessoas foram se somando às famílias originais.

"O conflito por terra ainda é algo que deixa as lideranças quilombolas e indígenas vulneráveis", afirma.

O quilombo de Iúna está na Chapada Diamantina, célebre pelas cachoeiras e pelo turismo de natureza. A região também carrega uma história associada à mineração. A descoberta do ouro no período colonial levou garimpeiros para as redondezas.

Povoados surgiram e pessoas escravizadas foram levadas para trabalhar na coleta do metal. Com a diminuição da importância econômica do garimpo na Chapada, o interesse pela região diminuiu, o dinheiro migrou, mas muitas comunidades permaneceram, e estão por lá até hoje.

Segundo Iracema, desde 2015, quando foi concluído pelo Incra o relatório técnico de identificação e delimitação territorial (RTDI), feito com a participação do escritor Itamar Vieira Junior, começaram a acontecer assassinatos.

O relatório define a delimitação do território a partir da relação de ancestralidade dos moradores locais e é parte central do processo de titulação de terras quilombolas, que começa com o autorreconhecimento da comunidade e passa pela certificação como remanescente de quilombolas pela Fundação Cultural Palmares.

Iracema diz que, desde então, posseiros começaram a vender terrenos nas redondezas de forma clandestina. Alguns dos compradores, conta, tinham envolvimento com o tráfico de drogas, o que teria colocado Iúna na rota desta atividade criminosa no interior da Bahia.

"Em 2017, aconteceu o maior caso de violência. Morreram seis pessoas", lembra. "Vários assassinatos ficaram impunes. A polícia não faz nada. A Justiça não faz nada", diz, ainda sob o rescaldo do assassinato de outra liderança quilombola da Bahia: Mãe Bernadete, de 72 anos, morta agosto do ano passado.

Em novembro do 2023, o Ministério Público do Estado da Bahia ofereceu denúncia contra cinco pessoas suspeitas de participação no assassinato da líder quilombola e ialorixá Bernadete Pacífico, atingida por 25 tiros em sua comunidade, o quilombo Pitanga dos Palmares. O órgão diz que quatro dos denunciados seriam integrantes de uma facção que atua no tráfico de drogas.

No caso dos assassinatos em Iúna, três pessoas foram presas. A polícia também atribui o crime a disputas entre grupos envolvidos com o tráfico de drogas. A Secretaria da Segurança Pública da Bahia afirma que determinou que a Polícia Militar amplie o patrulhamento preventivo no quilombo. Além disso, solicitou que os comandantes da PM da região estreitem o contato com as lideranças locais. A secretaria também informa que solicitou à Polícia Civil prioridade na apuração dos crimes cometidos.

Claudio Dourado, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que atua naquela região, atribui os problemas de violência à negligência do Estado.

"É muito morosa a regularização das terras, e isso provoca incertezas", avalia. "A negligência do Estado intensifica o conflito na região porque, diante da ameaça de mudança no status da terra, fazendeiros começaram a vender lotes para pessoas de fora e começou a violência. Há uma rapidez no processo de ocupação do local, e uma vulnerabilidade da comunidade tradicional diante disso."

A regularização fundiária do quilombo de Iúna está na fase de publicação de decretos. Depois disso, o Incra poderá vistoriar e, então, ingressar com ação de desapropriação das partes do território que estão em disputa. Fazendeiros interessados dizem ter direito a indenização, e cada caso de desapropriação será avaliado pela Justiça. Só então será possível emitir o título de propriedade, que fica registrado no nome da associação de moradores.

A relação do autor de "Torto Arado" com comunidades rurais vai muito além de sua atuação junto ao Incra, e remonta a sua história pessoal. Seu pai foi criado no campo, na Bahia. Viveu em condições, de certa forma, similares a de pessoas da região do quilombo Iúna. O pai e os avós de Itamar cultivavam a terra, mas não eram seus proprietários. E passaram por diversas privações.

Somente quando foi trabalhar no Incra e começou a visitar propriedades rurais é que pôde conhecer o lugar onde seu pai foi criado.

"Eu percebo que existe no Brasil uma imensidão de histórias, de pessoas, e eu acho que 'Torto Arado' conta um pouquinho de tudo isso", diz. "No Brasil pós-abolição, o que aconteceu com essas pessoas?"

As comunidades que visitou inspiraram, o ajudaram a construir personagens e cenários. No entanto, apesar das similaridades, Itamar reafirma que o livro é uma ficção.

"Minha convivência com eles [Iúna] foi bem importante. Eles me ensinaram muita coisa sobre o jarê ", conta, referindo-se à prática religiosa de matriz africana que aparece no livro.

O autor diz que "Torto Arado" tem um pouco de cada pessoa. E, por isso, fica feliz quando quilombolas de Iúna acreditam que a comunidade é a mesma do livro ou quando apontam outras similaridades.

"Eu acho ótimo que Iracema pense ser Bibiana. Essas pessoas nunca se viram representadas no cinema, na literatura, no teatro. Então, é muito importante que elas assumam isso como uma verdade, como sendo sua história."

"A gente se sentiu muito valorizado", confirma a professora Iracema. "Até o prêmio [Jabuti] que Itamar recebeu pelo livro, ele dividiu entre as famílias na comunidade."

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