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Bernadete Pacífico, líder quilombola, é assassinada a tiros na Bahia

Vítima sofria ameaças desde morte de filho, há seis anos; parentes e entidades cobram investigação

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Simões Filho (BA), Salvador e São Paulo

A líder quilombola Bernadete Pacífico, 72, conhecida como Mãe Bernadete, foi assassinada a tiros na noite desta quinta-feira (17) na casa ao lado do terreiro de candomblé que comandava em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador.

Ela era coordenadora nacional da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e liderava o Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho. Trabalhava havia anos denunciar a violência cometida contra a população quilombola e a tentativa de tomada das terras.

Após o assassinato de seu filho Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, em 2017, a luta contra os ataques a terreiros e o assassinato de lideranças religiosas de matriz africana se intensificou. Conhecido como Binho do Quilombo, ele era um dos líderes quilombolas mais respeitados da Bahia.

Foto mostra mulher negra sentada em uma cadeira, Ela usa um turbante e veste uma roupa colorida
Bernadete Pacífico era líder quilombola na Bahia e coordenadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) - Conaq/Divulgação

Outro filho de Mãe Bernadete, Jurandir Wellington Pacífico afirmou que ela recebia ameaças havia pelo menos seis anos e disse acreditar que ela foi vítima de um crime de mando.

"Foi um crime de mando, não tem para onde correr. O cara foi pago para executar. Isso é notório, foi um crime de execução. Executaram meu irmão em 2017, agora executaram minha mãe. Isso me faz pensar que eu sou o próximo", afirmou Jurandir à Folha, na entrada do Instituto Médico Legal de Salvador.

A líder quilombola estava junto dos netos quando dois homens chegaram usando capacetes e abordaram a família. Os netos foram trancados em um quarto e Mãe Bernadete foi assassinada com 14 tiros.

Ela já havia recebido ameaças e fazia parte de um programa de proteção a defensores de direitos humanos do Governo na Bahia. Câmeras foram instaladas na sua casa e no entorno e policiais faziam visitas periódicas ao local, mas não havia uma vigilância constante.

A Polícia Federal na Bahia diz que foi instaurado inquérito para investigação da morte de Maria Bernadete e que o caso de Binho está sendo apurado. "Todos os esforços estão sendo empregados para a devida apuração da autoria dos homicídios e as investigações seguem em sigilo."

O caso também será investigado pela Polícia Civil. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), prometeu firmeza na investigação.

A Conaq repudiou o crime. "Sua dedicação incansável à preservação da cultura, da espiritualidade e da história de seu povo será sempre lembrada por nós", diz o texto. "Sua ausência será profundamente sentida. Seu espírito inspirador, sua história de vida, suas palavras de guia continuarão a orientar-nos e às gerações futuras."

Segundo a organização, a morte de Binho não foi elucidada e Bernadete atuava para solucionar o caso. "Enquanto lamentamos a perda dessa corajosa liderança, também devemos nos unir em solidariedade e determinação para continuar o legado que ela deixou", diz a Conaq.

Na nota, a organização cobra do governo medidas imediatas para a proteção dos outros líderes do quilombo de Pitanga de Palmares e uma investigação rápida para encontrar os responsáveis pelo crime.

Bernadete foi secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho na gestão do então prefeito Eduardo Alencar (PSD), irmão do senador Otto Alencar (PSD).

Em julho, ao lado de outras líderes quilombolas, ela participou de um encontro com a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, na comunidade Quingoma, na cidade de Lauro de Freitas. Na ocasião, ela afirmou que era ameaçada por fazendeiros.

"É o que nós recebemos, ameaças. Principalmente de fazendeiros, de pessoas da região. Hoje eu vivo assim que não posso sair que eu estou sendo revistada. Minha casa é toda cercada de câmeras, eu me sinto até mal com um negócio desse", afirmou.

A ministra lamentou a morte nesta sexta. Em nota, Rosa Weber disse ser "absolutamente estarrecedor que os quilombolas, cujos antepassados lutaram com todas as forças e perderam as vidas para fugir da escravidão, ainda hoje vivam em situação de extrema vulnerabilidade em suas terras".

O presidente Lula afirmou em uma rede social que o governo federal mandou representantes. "Aguardamos a investigação rigorosa do caso."

Mãe Bernadete iniciou-se aos 23 anos no terreiro Ilê Axé Kalé Bokum, em Salvador, por meio do babalorixá –título de maior autoridade no candomblé– Severiano Santana Porto (1894 -1972). "Ela era uma leoa, queria ter todo mundo debaixo da asa dela. Queria proteger todo mundo. O que pudesse fazer, ela fazia. Criou muitas pessoas aqui na comunidade e foi uma grande inimiga da fome, matou a fome de muita gente", lembra o neto Wellington Adriel, 22.

Para além de ser porta-voz e representante das demandas políticas do quilombo, Bernadete também exercia um papel de cuidado direto e pessoal com a comunidade. "Orientação, marcação de exame médico, distribuição de cesta básica, manifestações culturais, ela estava sempre presente."

Ialorixás são as mães de santo do candomblé. Segundo Adriel, o título foi popularmente atribuído a ela devido a esse caráter maternal de Bernadete, chamada de "mãe" por toda a comunidade. A avó era, na realidade, ebomi, título dos adeptos do candomblé que já cumpriram o período de iniciação (iaô) na feitura de santo e a obrigação de sete anos.

O assassinato instalou um clima de medo entre os moradores da comunidade de Pitanga dos Palmares, que vivem de artesanato, agricultura de subsistência e da criação de animais em uma região relativamente isolada do núcleo urbano da cidade que abriga cerca de 300 famílias. A demarcação da área como terra de descendentes de quilombolas está em fase final de tramitação no governo federal, mas segue parada desde 2017.

"Como a gente fica agora? A gente vai viver com medo", afirma Cristina da Silva Cruz, 65, que há nove anos mora na área rural da comunidade quilombola e ajudou a cuidar dos filhos de Bernadete quando estes eram crianças.

Zenildo Conceição dos Santos, 49, que foi criado pela líder quilombola e a tinha como uma mãe, diz que as famílias vivem com receio desde o assassinato de Binho, o que fez com que parte dos moradores deixassem a zona rural e buscassem abrigo em áreas urbanas.

Na tarde desta sexta, amigos, vizinhos e saudaram a passagem do caixão com uma salva de palmas quando o corpo de Bernadete chegou à Capela de São Gonçalo. A capela fica na mesma praça é realizada a Festa de São Gonçalo, uma das principais manifestações culturais de Simões Filho que era organizada por Bernadete e outros quilombolas.

Uma cerimônia religiosa do candomblé foi conduzida pelo povo de santo, que saudou e se despediu da líder. Moradores, vizinhos e amigos iniciaram uma vigília, que prometia seguir noite adentro.

O enterro de Bernadete será realizado neste sábado (19), às 11h, no cemitério da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador.

Repercussão

O ministro Silvio Almeida determinou o deslocamento de equipes do Ministério dos Direitos Humanos para Simões Filho e expressou solidariedade aos familiares e à comunidade.

Nas redes sociais, a conta do ministério fez uma postagem cobrando rapidez na investigação e punição do crime.

O Ministério da Igualdade Racial também anunciou o envio de uma comitiva para reunião com órgãos governamentais da Bahia, atendimento aos familiares de Bernadete e proteção ao quilombo.

Outra providência será a convocação de uma reunião extraordinária do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo Religioso, para que providências sejam tomadas no âmbito interministerial.

"O ataque contra terreiros e o assassinato de lideranças religiosas de matriz africana não são pontuais. Mãe Bernardete tinha muitas lutas, e a luta pela liberdade e direitos para todo o povo negro e de terreiro tranversalizava todas", diz nota do ministério.

O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), disse que recebeu com indignação a notícia sobre o assassinato e determinou que as polícias Militar e Civil desloquem-se para o local e "sejam firmes na investigação".

Segundo ele, o governo está empenhado no acompanhamento do caso e no apoio à família e à comunidade.

"Deixo aqui meu compromisso na apuração das circunstâncias", afirmou. "Não permitiremos que defensores de direitos humanos sejam vítimas de violência em nosso estado."

Outros políticos baianos lamentarem a morte da líder e pediram justiça. O deputado federal Valmir Assunção (PT-BA) afirmou ter recebido a notícia com tristeza e indignação.

"O governador Jerônimo Rodrigues tem que determinar investigação rigorosa desses crimes abomináveis, que não podem ficar impunes. Uma perda dolorosa e irreparável", afirmou a deputada estadual Olívia Santana (PC do B-BA).

A vereadora Marta Rodrigues (PT), de Salvador, pediu rigor nas investigações.

"Precisamos nos indignar coletivamente. Não podemos aceitar a morte de uma grande defensora de direitos humanos Quem matou Bernadete e a mando de quem?", perguntou a cantora Daniela Mercury.

O Instituto Marielle Franco também divulgou nota pedindo uma investigação rápida e responsável do assassinato da líder, uma mulher negra e ialorixá.

Colaborou Tayguara Ribeiro, de São Paulo

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