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Descrição de chapéu The New York Times

Símbolos de racismo, quartos de empregada passam por reinvenção no Brasil

Cômodos, que ficaram décadas sem contestação, desaparecem em novos empreendimentos e ganham outras funções em imóveis antigos

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Ana Ionova
Rio de Janeiro | The New York Times

Ana Beatriz da Silva, 49, ainda se lembra de sua primeira casa: um quartinho atrás da cozinha de um apartamento à beira-mar no Rio de Janeiro, onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica.

O quarto era pouco maior que um armário, quente e sufocante, diz ela, com apenas uma pequena janela para ventilação. Ana Beatriz dividia o espaço apertado com sua mãe e seu irmão mais velho até os 6 anos de idade.

"Nós vivíamos assim —espremidos em um cubículo," conta a professora de geografia.

Apartamentos à beira-mar no Rio de Janeiro - NYT

A experiência a convenceu de que nunca poderia ter um quarto de empregada em sua própria casa. Então, quando alugou um apartamento antigo em uma área de classe média do Rio, rapidamente transformou o cômodo em um escritório.

"O quarto de empregada é nossa herança colonial," afirma. "É vergonhoso."

Muitos brasileiros estão cada vez mais sentindo o mesmo.

Os quartos de empregada têm sido uma constante nas casas brasileiras por gerações, um vestígio de sua longa história de escravidão e um marcador tangível da desigualdade em um país onde, após a abolição, muitas famílias abastadas dependiam de trabalhadores domésticos mal pagos, em sua maioria negros, para limpar, cozinhar e cuidar das crianças. Alguns trabalhavam o tempo todo por centavos; outros labutavam apenas em troca de moradia e alimentação.

Mas o Brasil está passando por um acerto de contas com seu legado de escravidão e como esse passado doloroso moldou tudo, desde a economia até a arquitetura.

O debate se estendeu para o quarto de empregada, que muitos dizem ser um relicário racista e classista que não tem espaço nas casas modernas.

"A arquitetura apenas reflete o que a sociedade diz ser normal," diz Stephanie Ribeiro, arquiteta e designer que estuda esse tipo de cômodo há mais de uma década. "E, para muitas pessoas, o quarto de empregada não faz mais sentido."

Diferentemente da geração de seus pais, os jovens estão denunciando as desigualdades no Brasil, que tem uma população majoritariamente negra.

A cara da classe média do país também está mudando, à medida que brasileiros negros e pardos avançam economicamente, mas rejeitam alguns marcadores de riqueza, como empregadas domésticas.

Uma série de leis trabalhistas —garantia de jornada de trabalho de 44 horas semanais, salário mínimo padronizado e pagamento de licença médica— tornaram as empregadas domésticas residentes mais caras, empurrando o que antes era um símbolo de sucesso financeiro para fora do alcance de muitos brasileiros. Como resultado, menos trabalhadores domésticos vivem nas casas de seus empregadores.

Algumas pessoas dizem que ter um espaço dedicado é útil para as empregadas guardarem seus pertences ou fazerem uma pausa para o almoço. Outros argumentam que os quartos fornecem moradia essencial para trabalhadores domésticos que saem de áreas rurais distantes para centros urbanos, ou para aqueles que vivem nas periferias da cidade, a horas de distância das casas de seus empregadores.

Mas muitos discordam.

"Não há necessidade de essa trabalhadora passar a noite," afirma Luiza Batista, coordenadora da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, sindicato que representa cerca de 14 mil empregadas. "Essa pessoa trabalha o dia todo. Ela precisa de um lugar decente para descansar. Ela precisa poder bater o ponto."

Luiza, 68, disse que começou a trabalhar como empregada doméstica residente aos 9 anos, e passou décadas limpando, cozinhando e cuidando de famílias ricas. Em uma casa, ela e outra trabalhadora dividiam um quarto cheio de produtos de limpeza, material de construção e um botijão de gás.

"Você passava a noite respirando produtos de limpeza", lembra Luiza.

Os quartos de empregada ainda costumam servir como depósitos, abarrotados de tudo, desde eletrodomésticos quebrados até ferramentas reservas, disse ela. "Esse espaço nunca é apenas um lugar para a trabalhadora descansar."

Os quartos de empregada, claro, não são exclusivos do Brasil; eles são frequentemente construídos nas casas de famílias ricas em toda a Ásia, África e Oriente Médio.

Na América Latina, os cômodos gradualmente desapareceram de países como Chile e Argentina, onde as proteções aos trabalhadores tornaram as empregadas residentes menos acessíveis. Mas persistem em outros lugares, incluindo Colômbia, Bolívia e México, apesar da resistência de ativistas trabalhistas.

Agora, à medida que os brasileiros se desiludem com os quartos de empregada, estão transformando-os em bibliotecas, salas de estar e closets.

Os preços crescentes dos imóveis nas principais cidades do Brasil significam que mais empresas estão construindo apartamentos menores sem quartos de empregada, e os compradores estão mais seletivos sobre como usar espaços cada vez menores.

"A arquitetura brasileira está buscando uma nova identidade," afirma Wesley Lemos, arquiteto que projeta casas de luxo em todo o Brasil. "Então o quarto de empregada está desaparecendo dos projetos."

A ideia de um quarto de empregada sempre deixou Diogo Acosta desconfortável. A mulher que trabalhava para sua família às vezes passava a noite em um quarto apertado atrás da lavanderia de sua espaçosa casa, no Leblon, bairro nobre carioca.

"Era tão pequeno que basicamente só cabia o colchão dela," afirma Acosta, 34, saxofonista profissional. "Mesmo quando criança, eu achava isso muito estranho."

Depois que se mudou, Acosta viveu em uma série de aluguéis onde transformou os quartos de empregada em outra coisa. Em um apartamento, era escritório. Em outro, quarto de hóspedes pintado de cores vivas.

Saxofonista Diogo Acosta transformou o quarto de empregada de seu apartamento em um estúdio - NYT

Quando se mudou para um novo apartamento há dois anos, o quarto de empregada media apenas 3,5 metros quadrados e não tinha janela, o que o horrorizou e ao mesmo tempo o tornou perfeito para um estúdio de música à prova de som.

"É triste pensar que, antes disso, alguém dormia aqui," disse ele.

A reforma foi mais do que apenas prática. Para Acosta, que contrata uma trabalhadora para limpar sua casa uma vez por mês, reinventar o quarto de empregada também carregava um significado simbólico. "Quando damos outros usos a ele, não estamos apenas mudando um apartamento," disse ele, "estamos mudando as relações sociais também."

Historiadores traçam o quarto de empregada de volta até as senzalas. O Brasil aboliu a escravidão em 1888, mais tarde do que qualquer outro país no Hemisfério Ocidental.

Mas muitos libertos —sem meios financeiros— permaneceram nessas mesmas propriedades, servindo famílias que antes os escravizavam em troca de moradia, alimentação e um pequeno salário.

Quando a industrialização alimentou uma onda de migração para as cidades, famílias ricas traduziram a ideia dos alojamentos para um ambiente urbano: no Rio, apartamentos à beira-mar foram construídos nas décadas de 1930 e 1940 com pequenos quartos sem janelas para empregadas.

"Os quartos de empregada são as senzalas modernas," disse Joyce Fernandes, historiadora, rapper e escritora que ganhou fama após compartilhar suas próprias experiências como empregada doméstica de terceira geração.

No Brasil, onde a diferença entre ricos e pobres é maior do que em qualquer outro lugar da América do Sul, os quartos passaram incontestados por décadas.

Quando Brasília foi construída do zero no final dos anos 1950, arquitetos renomados, como Oscar Niemeyer, projetaram edifícios com alojamentos de serventes, banheiros de empregada e elevadores de serviço, cimentando desigualdades históricas em uma paisagem modernista.

Nas décadas de 1980 e 1990, novelas populares apresentavam famílias ricas e brancas sendo servidas por empregadas majoritariamente negras que viviam em quartos escondidos dentro de mansões luxuosas. No início dos anos 2000, os programas infantis mais populares do Brasil apresentavam empregadas que nunca saíam da cozinha.

"Mesmo os pobres, que muitas vezes trabalhavam nesses empregos, sonhavam em um dia se tornarem ricos e terem alguém para servi-los," disse Joice Berth, urbanista e arquiteta.

Ainda assim, algumas pessoas, até mesmo trabalhadores domésticos, acreditam que ainda há lugar para um quarto de empregada.

Rosângela de Morais, 48, trabalhadora doméstica de Salvador, começou a trabalhar como empregada residente quando tinha apenas 10 anos.

Ela não mora mais nas casas onde trabalha mas, à medida que os quartos de empregada desaparecem, ela diz que os trabalhadores domésticos ficam sem lugar para trocar de roupa, guardar pertences ou fazer pausa para o almoço.

Embora considere os quartos de empregada em sua forma tradicional desumanos, ela não acha que removê-los completamente seja a resposta. "Seria melhor manter esse espaço, para termos um cantinho nosso," disse ela. "Um quarto limpo, arejado, com uma janela, onde você possa descansar com dignidade."

Letícia Carvalho, 34, advogada da cidade de Aracaju, emprega quatro trabalhadores domésticos, um dos quais mora em sua casa.

"Ela não pode ir e voltar todos os dias," afirma.

Ainda assim, ela queria um tipo diferente de quarto de empregada, então o fez maior do que o usual, com uma grande janela, ar-condicionado e chuveiro quente. "Queríamos trazer um pouco mais de conforto para as pessoas que trabalham para nós," disse ela.

Enquanto o Brasil se afasta dos quartos de empregada, as divisões sociais persistem de outras maneiras. A maioria das casas ainda tem banheiros de serviço reservados para trabalhadores e a maioria dos prédios tem entradas e elevadores separados para empregadas, babás, passeadores de cães e entregadores de comida.

Ainda assim, Ana Beatriz, a professora, vê o desaparecimento do quarto de empregada como evidência de que o Brasil está enfrentando seu passado doloroso.

Quando ela deu entrada em sua primeira casa este ano, ficou feliz ao descobrir que não tinha um cômodo assim.

"É libertador não ter essa história pesada," disse ela. "Em vez disso, terei uma cozinha bem grande."

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