Descrição de chapéu indígenas Escravidão hoje

Como foi a escravidão no Brasil?

País manteve sistema escravagista por mais de 350 anos e foi o último país da América a aboli-lo

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João Pedro Abdo
São Paulo

A escravidão é um modo de produção econômico que explora o trabalho forçado de pessoas escravizadas. Seres humanos, nesse sistema, são equiparados a objetos ou animais, podendo ser vendidos e comprados.

Ao longo do período de colonização europeia no território americano, que teve início no século 15, a escravidão se estabeleceu como parte fundamental da ordem econômica.

No Brasil, a primeira população escravizada foi a de nativos indígenas. Nos anos seguintes, o tráfico e a escravização de povos africanos se estabeleceram, somando 5,8 milhões de pessoas trazidas da África, segundo o The Trans-Atlantic Slave Trade Datebase, uma base de dados internacional que reúne e compila os número de diversas pesquisas sobre o tema ao redor do mundo.

Esse número corresponde a 46,4% de um total de 12,5 milhões africanos traficados para a América, fazendo do território brasileiro o maior destino do tráfico de pessoas escravizadas entre as colônias europeias.

Como foi a escravidão no Brasil?

Por mais que os europeus utilizassem mão de obra escrava em seu próprio continente, foi nas colônias —e especialmente no Brasil— que a escravidão e o tráfico de pessoas vindas da África ganharam mais relevância.

A colonização do território brasileiro por Portugal dependia da exploração do trabalho forçado de indígenas, inicialmente, e de africanos, posteriormente.

A escravidão indígena teve início nas primeiras décadas após a chegada oficial dos portugueses, em 1500. Alguns fatores levaram à substituição dos povos nativos por africanos, até a abolição oficial da escravidão indígena em 1758.

Um desses fatores é apontado nas correspondências do padre Manuel da Nóbrega, jesuíta português que chegou ao território brasileiro ainda na primeira metade do século 16. Para o missionário, os indígenas não deveriam ser escravizados, pois poderiam ser catequizados e, portanto, poderiam ter suas "almas salvas". A solução encontrada pela corte foi a decretação da "guerra justa", que permitia a escravização de indígenas aprisionados em combate.

Há diversos aspectos que ajudam a explicar essa disseminação tão significativa da escravidão como um modo de produção e um modo de vida no Brasil.

Lucimar Felisberto Santos, pós-doutora em história pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ativista do MNU (Movimento Negro Unificado), afirma que a grande quantidade de africanos traficados e escravizados no Brasil se dá em razão da diversificação dos eixos econômicos explorados e da grande extensão do território brasileiro.

Soma-se a isso também a alta taxa de mortalidade dessa população e a reconquista da sua liberdade, o que acontecia com a obtenção da carta de alforria. Esse cenário fazia necessária uma constante substituição dos escravizados.

Por outro lado, independentemente da atividade na qual o trabalho forçado seria empregado, o comércio de escravizados era uma prática econômica por si só.

"O projeto colonial foi pensado a partir da escravidão da população africana como algo comercialmente lucrativo. Isso explica também os motivos que fizeram a escravidão durar tanto tempo no Brasil", afirma Valéria Costa, professora de história da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Quanto tempo durou a escravidão no Brasil?

As primeiras embarcações com africanos escravizados chegaram já na primeira metade do século 16, na capitania de Pernambuco, região nordeste do Brasil.

Mesmo com a abolição da escravidão indígena em meados do século 17, o fim legal do trabalho forçado no território brasileiro viria mais de 100 anos mais tarde.

A lei nº 3.353 de 13 de maio de 1888, popularmente conhecida como Lei Áurea, foi assinada pela Princesa Isabel, imperatriz regente e filha de Dom Pedro 2o, que se encontrava na Europa naquele período. Desde a chegada oficial dos portugueses ao território brasileiro, foram mais de 350 anos de escravidão legal no país.

Qual era o trabalho dos escravos?

O trabalho realizado pelas pessoas escravizadas mudou ao longo dos séculos, dependendo também das atividades econômicas desenvolvidas. Inicialmente, o trabalho forçado (de indígenas e africanos) foi utilizado nos engenhos de cana-de-açúcar montados no Nordeste pelos colonizadores. Desse momento até a abolição, a mão de obra escrava foi a principal força de trabalho no Brasil.

Ao longo dos períodos colonial e imperial, diversos produtos foram exportados do território brasileiro. A divisão temporal dessa produção diversificada é explicada através de ciclos econômicos que, além da cana-de-açúcar, compreenderam também a extração de pau-brasil, a extração de ouro, a produção de algodão, a produção de café e a extração de borracha.

Valéria, contudo, ressalta que a ideia de ciclos econômicos não deve ser entendida como o início e o fim de uma atividade econômica.

"Na realidade, a exploração dessas mercadorias era mais diversificada do que se imagina, coincidindo em diversos períodos", afirma.

Além disso, atividades domésticas também faziam parte do trabalho escravo, principalmente em centros urbanos. Viver nas cidades ou no campo alterava o cotidiano das pessoas escravizadas, mas, conforme Lucimar, não é possível dizer que havia melhoras nas condições de vida.

No meio rural, os escravizados tinham uma possibilidade maior para constituir um núcleo familiar. Por outro lado, a conquista da alforria era mais difícil nesse contexto, tendo em vista que o trabalho era mais exaustivo, e a relação com os escravizadores era mais distante.

Nas cidades, as alforrias eram mais comuns, e a socialização entre os africanos escravizados, por sua vez, não se resumia à formação de núcleos familiares. Lucimar diz que laços de solidariedade eram fortalecidos em comunidades como cortiços e quilombos urbanos, onde começou a surgir também uma identidade negra pautada nas relações de trabalho.

O fim da escravidão no Brasil

O Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir o trabalho escravo. O processo foi gradual e não garantiu nenhum tipo de reparação ou plano de libertação para as pessoas escravizadas.
Antes do fim da escravidão, os ideias abolicionistas começaram a circular na sociedade brasileira, e a alforria de africanos escravizados tornou-se cada vez mais comum. Na segunda metade do século 19, afirma Lucimar, 6 em cada 10 pessoas pretas da cidade do Rio de Janeiro já eram livres.

As rebeliões de escravizados também se tornavam cada vez mais frequentes. Uma das mais importantes foi a Revolta dos Malês, que aconteceu em Salvador em 1835 e é considerada a maior mobilização desse tipo no período.

O reconhecimento do protagonismo dos africanos escravizados na reconquista de sua liberdade é uma demanda do movimento negro contemporâneo. Isso pode ser observado, diz Valéria, em eventos como a "Marcha Contra a Farsa da Abolição na Transição Democrática", que aconteceu em 1988, no centenário da abolição oficial e no ano de promulgação da Constituição Federal.

Ao longo do século 19, leis que acabavam gradualmente com o trabalho forçado surgiram no país. A Lei do Ventre Livre (1871), que libertou todas as crianças nascidas de mães escravizadas a partir de então, e a Lei dos Sexagenários (1885), que libertou todos as pessoas em situação de escravidão com 60 anos ou mais, são algumas das que antecederam a Lei Áurea.

Outro marco foi a Lei Eusébio de Queiroz, que foi promulgada em 1831 e criminalizava a importação de africanos escravizados. Contudo, mesmo na ilegalidade, o tráfico continuou acontecendo.

Valéria afirma que o Brasil foi o principal protagonista do tráfico ilegal no Atlântico e criou estratégias para continuar importando e escravizando africanos em seu território, como a diminuição das embarcações e a utilização de portos mais interioranos.

Além das demandas internas, o Brasil foi pressionado pelos interesses da Inglaterra, que era um parceiro comercial importante. Para os ingleses, tornava-se cada vez mais vantajosa a exploração do trabalho livre e assalariado no lugar do trabalho forçado.

"No século 19, há uma debate internacional pela abolição da escravidão no continente americano. As nações que mantinham relações comerciais com a Inglaterra, como era o caso do Brasil, foram impulsionadas a acabar com o tráfico para manter essas relações", conta Valéria.

Qual a diferença entre trabalho escravo e trabalho análogo a escravidão?

Do século 20 em diante, o combate ao trabalho escravo também passou a fazer parte da agenda internacional dos países.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho), criada em 1919 pelo Tratado de Versalhes, tem como um dos principais objetivos a melhoria das condições de trabalho no mundo. Ela é uma das agências das Nações Unidas e tem 186 países signatários.

Em 1930, a Convenção nº 29 da OIT —que foi ratificada pelo Brasil— usa o termo "trabalho forçado e obrigatório", definido pela Organização como "todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade".

Na legislação brasileira, é o artigo 149 do Código Penal que criminaliza essa prática. Conforme explica Maria Hemília Fonseca, professora de direito da USP (Universidade de São Paulo), a ideia de trabalho análogo à escravidão difundida no Brasil é uma ampliação do conceito da OIT —que deixa de lado características como a jornada exaustiva e as condições degradantes de trabalho.

"Usar o termo [trabalho análogo à escravidão] ao invés de trabalho escravo ocorre porque a escravidão não é mais uma estrutura de modo de produção oficial e legal. Ele serve para ampliar as hipóteses que podem ser enquadradas na lei", explica Maria Hemília.

LINHA DO TEMPO:


- 1500: chegada oficial do portugueses ao território brasileiro

- 1516: introdução do cultivo da cana-de-açúcar e instalação do primeiro engenho conhecido na capitania de Pernanbuco

- Década de 1530: período estimado da chegada ao território brasileiro dos primeiros africanos escravizados

- 1758: fim oficial da escravidão indígena

- 1808: chegada da corte portuguesa ao Brasil

- 1822: independência de Portugal, por D. Pedro 1

- 1831: Lei Eusébio de Queiroz, que tornou o tráfico de africanos ilegal

- 1835: Revolta dos Malês, considerado maior motim de escravizados do qual se tem registro

- 1871: promulgação da Lei do Ventre Livre, a partir da qual ninguém mais nasceria na condição de escravizado

- 1885: Lei dos Sexagenários, que garantia a liberdade a todos os escravizados com idade igual ou superior a 60 anos

- 1888: Lei Áurea decreta o fim legal da escravidão no Brasil

- 1919: assinatura do Tratado de Versalhes e criação da OIT (Organização Internacional do Trabalho)

- 1930: Convenção nº 29 da OIT sobre trabalho forçado e obrigatório

- 1940: passa vigorar o atual Código Penal brasileiro, que traz a hipótese de trabalho análogo à escravidão

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