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Crise financeira grega levou à queda no número de crianças no país

Falta de perspectivas faz com que planos de ter filhos sejam adiados

Criança participa de atividade do Festival de Cinema Infantil de Atenas - Marios Lolos - 7.dez.2018/AFP

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CHICO HARLAN
Kalpari (Grécia)

Era o início de um novo ano letivo. Os alunos estavam chegando para o primeiro dia de aulas, formando filas separadas pela série escolar. Enquanto observava seu filho tomar seu lugar na fila da primeira série, uma mãe se perguntou “onde estão todas as crianças?”.

“Havia tão poucas”, comentou Vasso Harisiadi, que estudou na mesma cidade quando era criança. “Pensei que o pátio estaria cheio delas.”

Mas a turma mais recente de alunos da escola primária de Kalpaki era um reflexo dos problemas demográficos crescentes da Grécia. Em 2018 a escola recebeu apenas 13 alunos na primeira série. Alguns dos alunos viviam em vilarejos onde eles eram as únicas crianças.

Meia dúzia de outras escolas na região fecharam as portas recentemente. Mais e mais casais estão se mudando para outros lugares ou adiando o momento de ter filhos –por estarem desempregados ou, como é o caso da professora da primeira série em Kalpaki, porque ganham tão pouco que não teriam como sustentar um filho.

“Neste momento não posso nem sequer cogitar ter um filho”, disse a professora, Maria Bersou, 33. Ela ganha o equivalente a US$ 18 mil (R$ 70 mil) por ano. “Não consigo economizar nada.”

A economia da Grécia, com sua necessidade de ser resgatada e a possibilidade de colocar o euro em risco, já deixou de assustar a Europa. Mas o país está apenas começando a enfrentar um segundo perigo: uma queda no índice de natalidade, algo que pode deixar a Grécia encolhida e enfraquecida por anos pela frente.

Durante o crash profundo e prolongado do país que começou no final de 2009 e se agravou a partir de 2011, o índice de natalidade, que já era baixo, caiu ainda mais, seguindo o padrão visto em outros países economicamente conturbados do sul da Europa.

A Grécia também sofreu um segundo impacto: o êxodo de meio milhão de pessoas, muitas delas jovens que potencialmente se tornariam pais. 

Apesar de o país ter estado na linha de frente da onda de migrantes vindos do Oriente Médio e norte da África, a maioria dos recém-chegados seguiu viagem para outros países europeus, e de qualquer maneira os migrantes não compensam o êxodo de gregos.

Com isso, a recessão contribuiu para o surgimento da menor geração grega do pós-guerra –um grupo de crianças que estão chegando à idade escolar agora, algumas das quais comparecem à escola usando sapatos e mochilas de segunda mão e estão apenas começando a compreender que nasceram em tempos difíceis.

“As crianças não sabem que antigamente a gente vivia melhor”, comentou Sotiria Papigioti, mãe de dois filhos que estão na primeira e segunda série da escola de Kalpaki. “Mas, quando elas me pedem coisas, tenho que dizer ‘não temos como comprar isso ou aquilo’.”

O índice de fertilidade é de 1,35 filho por mulher na Grécia, um dos mais baixos da Europa e bem abaixo dos 2,1 filhos necessários para garantir a estabilidade demográfica, sem levar em conta a imigração. O índice estava subindo no país antes da crise, tanto que em 2008 chegara a 1,5 filho por mulher. Esse progresso foi anulado desde então, e hoje o índice de natalidade voltou aos baixos patamares verificados no final dos anos 1990 e início da década de 2000.

Crianças dentro do campo de refugiados de Fylakion, no norte da Grécia - Aris Messinis - 2.nov.2018/AFP

Mas, devido ao êxodo de adultos que potencialmente teriam filhos, o número de crianças nascidas no país caiu mais que o índice de fertilidade, para um patamar historicamente baixo. Em 2009, pouco antes da fase pior da crise, houve 118 mil nascimentos na Grécia. Esse número vem caindo constantemente desde então, sendo fortemente superado pelo número de mortes. O total de nascimentos de 2017, 88.500, foi o mais baixo já registrado.

Alguns países viram seu índice de fertilidade se recuperar rapidamente após uma crise econômica. Mas é pouco provável que isso ocorra na Grécia, segundo o demógrafo Byron Kotzamanis, da Universidade da Tessália, porque mesmo antes da crise a idade média em que as mulheres gregas tinham seu primeiro filho era 31. 

Algumas mulheres que adiaram a primeira gravidez durante a recessão já perderam sua chance de engravidar. Por isso, segundo Kotzamanis, a recessão reduziu permanentemente o tamanho da geração grega mais recente e encolheu o pool de possíveis pais e mães por anos pela frente.

“Teremos cada vez menos nascimentos na Grécia nas próximas décadas”, disse Kotzamanis.

Essas alterações demográficas enfraquecem as perspectivas de a Grécia alcançar o tipo de retomada vista após a Grande Depressão dos anos 1930 nos Estados Unidos ou a crise financeira asiática da década de 1990. 

A economia grega permanece 25% menor do que era uma década atrás, e o escritório de estatísticas europeu estima que nas próximas seis décadas a população grega, hoje 10,7 milhões de habitantes, vai encolher em 32% --uma diminuição superada apenas por alguns países mais pobres do leste europeu que sofreram seu próprio êxodo de trabalhadores para partes mais ricas do continente.

As mudanças se manifestam em toda parte na Grécia. Nos cafés de Atenas, mulheres na casa dos 30 anos que não têm filhos lamentam a falta de opções de creche e os programas perpetuamente deficientes de apoio à família oferecidos por um governo que hoje luta para enfrentar a austeridade e os custos das aposentadorias. 

Nas áreas mais rurais do país, pessoas que poderiam ter filhos dizem que se o fizessem, teriam dificuldade em encontrar assistência médica, já que muitos médicos deixaram o país. O ginecologista Stefanos Chandakas, fundador de uma ONG que ajuda a prestar atendimento pré-natal à população, disse que em uma ilha grega com mil habitantes nem um único bebê nasceu durante um período de pelo menos três anos no meio da crise.

“Temos fotos das ilhas –os moradores fazem desfiles grandes e há apenas uma criança no meio segurando a bandeira”, disse o médico.

Na escola de Kalpaki, um prédio de dois andares ao lado de uma estrada na região montanhosa do noroeste do país, algumas das rotinas parecem continuar praticamente iguais desde que a escola foi aberta, em 1996. O dia letivo começa com uma oração ortodoxa grega. No recreio, as crianças jogam futebol. Os pais dizem que a escola tem funcionado admiravelmente nos últimos anos, apesar de ter reduzido seus gastos em 30% e cortado os salários de seus profissionais várias vezes. O diretor diz que a escola de Kalpaki tem sorte: não precisou ainda desligar o aquecimento, como ocorre em alguns outros colégios.

Mas as mudanças demográficas marcaram a escola e a vida dos alunos. Vinte anos atrás a escola tinha cem alunos. Hoje, devido ao fechamento de outras escolas da região, seus alunos vêm de uma área maior que antes. Mas a escola de Kalpaki hoje tem apenas 70 alunos da primeira à sexta série. Vinte deles são de origem albanesa, filhos de pais que se radicaram na Grécia nas décadas anteriores à crise. Outros 20 são sírios recém-chegados cujas famílias vivem em um campo de refugiados das proximidades, enquanto correm seus pedidos de asilo.

“A população local está encolhendo”, disse o diretor, Miltos Mastoras. “Sem as crianças sírias, teríamos metade dos alunos de 20 anos atrás.”

Na sala da primeira série, as crianças aprenderam este ano sobre sílabas, triângulos e palavras inglesas para falar do tempo. A tinta das paredes está descascando, e o que a classe possui que mais se assemelha a tecnologia é o aquecedor.

“Estamos um pouco ultrapassados”, admitiu Bersou, a professora.

Ela às vezes se pergunta como a crise pode estar afetando o modo de pensar de seus alunos de 6 e 7 anos. No início do ano ela pediu que os pais comprassem alguns materiais escolares básicos. “Você como as crianças reagem quando ganham essas coisas: elas se alegram até com uma simples régua”, ela comentou.

No caso de seus alunos gregos, geralmente pelo menos um dos pais tem um emprego relativamente estável –agricultor, policial, operário de fábrica. Essas famílias fazem parte do grupo que consegue sustentar seus filhos, mesmo que apenas minimamente. Alguns dos pais dos alunos da primeira série estão na casa dos 40 anos, perto do fim de sua fase reprodutiva, e dizem que não podiam aguardar o fim da crise para ter filhos.

Bersou quer muito ter um filho, mas ainda está esperando alcançar estabilidade financeira suficiente. Ela mora na cidade mais próxima a Kalpaki, a 30 minutos de distância de carro, onde vive de maneira pensada intencionalmente para ser temporária: em um apartamento de quarto e sala e com poucos amigos. Seus pais, cujos próprios rendimentos minguaram devido à crise, ainda a ajudam a pagar sua conta de telefone e o financiamento de seu carro. 

Como já se tornou típico entre os jovens gregos, Bersou ainda está à espera de algo melhor, teme que esteja apenas conseguindo se sustentar, mas não construir algo maior, e receia que as coisas não vão melhorar muito. “Isso nos afeta psicologicamente”, ela explicou. “Os anos passam e a gente se pergunta ‘o que eu fiz com a minha vida?’.”

Ela compensa por isso, procurando fazer o melhor possível por seus alunos. Bersou comprou com seu próprio dinheiro materiais para trabalhos de arte e adesivos para serem entregues aos alunos mais bem comportados. Este ano ela, na prática, ensinou duas turmas: uma formada pelos alunos sírios da primeira série que quase não falam grego, a outra pelos dez alunos restantes. 

Alguns dias ela traz seu laptop à escola para que os alunos possam ouvir canções, jogar jogos educativos e assistir a curtas-metragens.

Uma de suas alunas mais quietas é Chrysa Papigioti, que gosta de desenhar e quer ser veterinária quando crescer. Chrysa vive num povoado de montanha a 16 quilômetros de Kalpaki. Ela e seu irmão são as únicas crianças da vila em idade escolar primária. Seu pai raramente está em casa, porque viaja a trabalho, vendendo colchões e outros artigos domésticos no oeste do país –o único trabalho que encontrou depois de passar um período desempregado.

“Chrysa sabe se entreter sozinha”, falou sua mãe, Sotiria, numa noite recentemente, enquanto observava sua filha montar uma loja de Lego, construindo um balcão com caixa.

Ela não deixa Chrysa e seu irmão assistirem ao noticiário da televisão, e as duas crianças nunca lhe perguntaram diretamente sobre as dificuldades passadas no país. Sotiria, que é policial, disse que eles não precisam saber que o salário dela foi reduzido, que a família contraiu um empréstimo grande que a preocupa e que ela e muitos outros pais e mães na região ajudam uns aos outros a procurar roupas e outros artigos de segunda mão para seus filhos.

Ainda é cedo para Chrysa tomar consciência de tudo isso.

“As crianças não precisam saber de tudo”, explicou Sotiria. “Não quero que elas pensem em coisas sofridas. Quero que tenham uma infância feliz.”

Tradução de Clara Allain

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