Descrição de chapéu Livros

Poemas de Homero, 'Ilíada' e 'Odisseia' continuam a influenciar a cultura pop

Público consome esquemas dos argumentos de sagas gregas por meio das séries como 'Game of Thrones'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cena da sétima temporada da série

Cena da sétima temporada da série "Game of Thrones" Divulgação

Luís Antônio Giron
São Paulo

Os poemas épicos gregos “Ilíada” e “Odisseia”, atribuídos a Homero (século 8º a.C.), servem de modelo às sagas que se seguiram e hoje compõem a base da vida civilizada.

Antes do Novo Testamento, “Senhor dos Anéis” e “Game of Thrones”, lá estão eles. Se as colunas do Pártenon em Atenas se despedaçaram, os versos das epopeias homéricas resistem firmes e pulsantes. Eles ainda fazem e produzem sentido.

Mesmo sem saber, o público de cultura pop consome esquemas dos argumentos das sagas gregas por meio das séries de streaming e canais pagos, como “Game of Thrones”, nos romances seriados de autores de pecados literários seriais, nas histórias em quadrinhos e as superproduções cinematográficas com seus super-heróis ou a nova genealogia dos guerreiros hipsters, iniciada por Brad Pitt no papel de Aquiles em “Troia” (2004).

A moda (ou virou hábito?) alcança o teatro, gênero restrito a um tempo e a um local que vem levando ao palco a “Odisseia”. Um exemplo é a Cia. Hiato, que completou dez anos representando sua adaptação.

A prova do apelo popular é a constante edição de traduções dos textos homéricos. Em língua portuguesa, as duas obras são vertidas desde o Renascimento de forma indireta, especialmente do francês.

As primeiras versões do grego foram realizadas pelo escritor maranhense Manuel Odorico Mendes, publicadas em 1874. Em 2002, Haroldo de Campos fez sua leitura transcriativa da “Ilíada”.

Entre 2003 e 2005, o filólogo português Frederico Lourenço traduziu a “Odisseia” e “Ilíada” do grego. Em 2011, foi a vez do tradutor brasileiro Trajano Vieira apresentar uma edição bilíngue da “Odisseia”. O lançamento mais recente é a edição dos dois poemas em tradução do professor de língua e literatura gregas da USP Christian Werner e ilustrado por colagens do artista plástico Odires Mlászho.

A “Odisseia” de Werner havia sido lançada em 2014. São traduções em verso livre que tentam restaurar a cadência solene da épica grega —o  hexâmetro dactílico— sem, no entanto, soarem artificiais ao público de hoje. Eis porque se produzem traduções diversas através dos tempos: para que sejam compreendidas pelos leitores vivos.

Na Grécia Antiga, as lendas e façanhas eram entoadas diante da comunidade pelos aedos, poetas músicos que marcavam com o cajado cantos e passagens comoventes. Por esse modo, produziam narrativas de coesão social. A escrita alfabética, criada 2.500 anos antes pelos sumérios, ainda não havia sido difundida na Europa. A propagação das sagas se dava por via oral.

Os nomes dos bardos iletrados e suas obras se perderam. Somente o aedo cego Homero sobreviveu à era arcaica. Isso porque “Ilíada” e “Odisseia”, imputadas a ele, foram transpostas de poemas orais para textos escritos, provavelmente pelo autor, ou autores. Assim, os textos basilares do Ocidente resultam da tradução do texto oral para o escrito.

A partir do século 6º a.C. os governantes atenienses implantaram a paideia, a educação do cidadão da polis, usando as duas sagas como livros didáticos principais. Embora contados de forma mítica e fantástica, esses poemas serviam para ensinar gramática, regras de estilo e versificação; princípios morais e cívicos; culto aos heróis militares e aos deuses; noções de estratégia, armamento e táticas de guerra.

Os estudiosos contemporâneos contestam a autoria única dos textos, por exibirem diferenças entre si em três aspectos: na concepção dos enredos, no estilo e nas locuções idiomáticas.

A pedagogia homérica surtiu efeito nos 27 séculos seguintes, apesar da origem duvidosa de suas fontes. Influenciados por Homero, os leitores que se tornaram escritores forjaram a tragédia e a comédia, os diálogos filosóficos e a historiografia.

Ao longo de dois milênios, os dois textos deram origem ao cânone literário ocidental, formado por obras fundamentais, mas também por redes de elaboração narrativa. Até a ópera surgiu em 1580 como uma interpretação das sagas ancestrais.

Correntes de releituras imitativas de Homero ajudaram a refinar o gênero épico. O romance “Ulysses” (1922), de James Joyce, transpõe o percurso de Odisseu para um dia na vida do anti-herói Leopold Bloom na Dublin provinciana de 1904. Hoje, artistas de todas as mídias se debruçam sobre as lições antigas.

Mudanças de gosto e mentalidade levaram o público de agora preferir a jornada do herói da “Odisseia” ao relato sangrento da “Ilíada”. Sob uma e outra forma, os roteiros das sagas de massa se plasmam nos métodos e na retórica da epopeia clássica. 

O que explica a permanência das duas obras? A resposta rende teses. Basta afirmar que os homens vivos as leem, assim como elas espelham e transfiguram o que se passa agora, filtradas por inúmeras interpretações, leituras e versões. Em cultura, os mortos valem tanto quanto os vivos. Por isso, a fome de narrativas ultrapassa as noções fixas de tempo.

Da mesma forma, a vida diária não envolve apenas entretenimento, mas um acervo de discursos que norteia as ações humanas. Ele aponta tanto para o que aconteceu como o que virá, apesar das mudanças e perturbações que têm regido o chamado progresso da civilização.

As sagas homéricas fornecem uma régua lógica, mítica e ética para um mundo tão ou mais precário que o dos tempos remotos. Acima de tudo, elas contam grandes histórias enquanto ensinam a narrá-las.

 

Box Homero - Ilíada e Odisseia (dois volumes)
Editora Ubu e Sesi-SP; 1.344 páginas, R$ 220
Tradução de Christian Werner

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do publicado, a recém-lançada tradução de Christian Werner dos poemas “Ilíada” e “Odisseia”, pela editora Ubu, é em verso livre, não em decassílabos. Homero tampouco escreveu em pentâmetro jâmbico, como informou a reportagem, mas em hexâmetro dactílico. Por fim, Haroldo de Campos lançou em 2002 sua tradução de “Ilíada”, e não de “Odisseia”.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.