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Descrição de chapéu The New York Times

Basquete é uma 'guerra sem tiros' entre grupos religiosos no Líbano

Times do campeonato nacional são controlados por religiões e partidos diferentes

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Vivian Yee
Beirute | The New York Times

Falando francamente, aquele time jamais iria ganhar. Mas isso não impediu os torcedores fanáticos nas arquibancadas de gritar palavrões contra seus adversários. Alguns desafios eram da variedade "sua mãe", outros de um gênero que os libaneses, talvez os únicos entre os torcedores de basquete do mundo, levaram à perfeição: o insulto político como grito de guerra durante as partidas.

O que eles gritaram não pode ser impresso, mas foi ofensivo o suficiente ao presidente do Líbano, Michel Aoun —líder do partido político que apoiava não oficialmente o time rival— , para que irrompesse uma briga.

Torcedor durante jogo de basquete em Dik El Mehdi, no Líbano - Diego Ibarra Sánchez/The New York Times

A polícia antimotim invadiu a quadra. Os apresentadores de TV gaguejaram. Duas autoridades do esporte que tentaram silenciar os cantos acabaram no hospital. 

"E era um caso sem esperança", lamentou Akram Halabi, presidente da federação nacional de basquete do Líbano. "Eles estavam perdendo por 33 pontos!" (Aoun não estava no jogo, por isso não correu perigo.)

Hoje em dia, quando os direitos de sediar a Copa do Mundo de futebol são uma questão de intriga geopolítica e o presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, habitualmente criticando a liga de futebol americano, poucos esperam que esporte tenha a ver apenas com esporte.

Mas os esportes têm um elenco político particular no Líbano, cujas 18 seitas religiosas reconhecidas oficialmente e partidos políticos afiliados vivem, trabalham e convivem uns com os outros, mas nunca param de buscar vantagem. É um país onde o partidarismo espreita tudo, a grosso modo, como escolas, hospitais, bancos, clubes de xadrez, pingue-pongue e escoteiras.

Depois há o basquete libanês, um esporte popular com uma base de torcedores apaixonados, cuja temporada profissional parece muito uma eleição com muitos candidatos altos e musculosos.

Cada clube de basquete recebe o grosso do financiamento de um patrocinador com conexão política que, em troca, atrai para seu partido a lealdade dos torcedores —e eleitores.

As cores dos partidos adornam as camisas dos jogadores. Os estádios são enfeitados não só com as bandeiras do campeonato, mas também com grandes cartazes dos patronos políticos, como a enorme foto do ex- primeiro-ministro assassinado Rafic Hariri, que preside os jogos de um dos times em seu ginásio.

Torcedores do Riyadi comemoram em rua de Beirute - Diego Ibarra Sánchez/The New York Times

Os muçulmanos sunitas torcem para um time financiado por muçulmanos sunitas, os cristãos maronitas por um time dessa seita e os armênios por um time armênio.

O basquete libanês é uma "guerra sem os tiros", disse Danyel Reiche, professor na Universidade Americana em Beirute que pesquisa política e esportes no Líbano. 

"Acho que não devemos ter uma visão romântica do esporte, de que é sempre bom e sempre une as pessoas", disse Reiche. "Também pode dividi-las."

De fato. Os torcedores do time sunita Al-Riyadi são famosos por se vestirem de vermelho nos jogos contra o Homenetmen, o time armênio, em uma referência zombeteira à bandeira da Turquia —país onde pelo menos 1 milhão de armênios foram assassinados num genocídio há um século. 

A política, tanto local como regional, mistura-se de maneira inglória ao basquete no Líbano há anos. 

Em 2006, a seleção nacional chegou à Copa do Mundo só depois de uma viagem de 13 horas de ônibus, quando a guerra com Israel naquele ano os obrigou a fugir do país. 

Talvez o pior momento tenha sido em 2013, quando as eliminatórias nacionais entraram em tumulto depois que o ministro do Interior do país, aparentemente tentando reforçar seu time, ordenou o adiamento de um jogo das quartas de final. O Líbano foi então suspenso temporariamente da competição internacional de basquete.

Todos culparam os políticos, incluindo alguns políticos.

"Estou profundamente triste de anunciar o fim do basquete libanês, por causa da política e do sectarismo", disse na época o ministro da Juventude e Esportes, Faisal Karami. "Há um clima político sujo no país, e isso estragou tudo."

Foi tudo tão enervante para Hassan Whiteside, um futuro astro do Miami Heat que então competia na liga libanesa, que ele imediatamente partiu para jogar na China. Desde então só teve coisas ruins para dizer sobre o Líbano. 

Considerando seu tamanho (mais ou menos igual a Connecticut), a população (cerca de 6 milhões) e o histórico em outros esportes (sem distinção), o Líbano é muito bom no basquete. Seus times juvenis estão em ascensão. A seleção nacional venceu a China no ano passado, mas não se classificou para a Copa do Mundo deste ano.

Os torcedores ficam felizes em falar sobre o último jogador libanês que fez sucesso: Rony Seikaly, um astro de faculdade em Syracuse (EUA), nascido em Beirute, que jogou na NBA durante mais de dez anos. 

As autoridades libanesas sonham em catapultar outro libanês para a NBA, e Halabi, o presidente da federação nacional, está tentando despolitizar e profissionalizar o esporte obtendo acordos de transmissão e patrocinadores apolíticos para as equipes. 

Ele diz que a federação fez progressos no desenvolvimento de times jovens, promovendo treinadores locais e proibindo slogans religiosos e políticos nas partidas —embora isto seja difícil de aplicar.

Praticamente o único aspecto apartidário do campeonato talvez sejam os próprios jogadores, muitos deles europeus ou americanos que estão no circuito internacional depois que suas carreiras universitárias não avançaram para contratos na NBA. Sob as regras da federação destinadas a ajudar os jogadores libaneses, os times só podem colocar na quadra dois estrangeiros por vez. 

Jogadores estrangeiros e libaneses de diferentes religiões jogam para todos os times e têm torcidas fervorosas, independentemente da origem. Reiche lembrou que assistiu a jogos do Riyadi em que o público entoava cânticos à Virgem Maria sempre que um jogador cristão encestava.

Homens jogam basquete em Beirute - Diego Ibarra Sánchez/The New York Times

E a equipe nacional —cujos jogadores já foram escolhidos pela religião, mas hoje são selecionados pelo mérito— lota estádios com uma torcida pan-sectária que supera as divisões políticas. 

Fora dos jogos nacionais, porém, os momentos de harmonia tendem a ser breves. Solicitado a descrever os torcedores libaneses, Slobodan Subotic, um esloveno que treinou o Riyadi antes de se tornar o treinador da seleção nacional, usou três palavras: "Malucos! Malucos! Malucos!" 

"Mas eu gosto desse clima", disse Subotic, que não pode mais fazer corridas matinais em Beirute sem encontrar torcedores fascinados. "Às vezes acontecem coisas, mas nada grave."

Nem sempre, de todo modo. Há um motivo para a polícia antimotins patrulhar habitualmente os jogos.
Daniel Faris, um americano de origem libanesa do Novo México que joga para o Champville e recebeu a dupla cidadania para jogar na seleção libanesa, presenciou tantas brigas —incluindo uma em que seus colegas de time começaram a discutir com torcedores rivais—  que aprendeu a ser cauteloso para não criticar torcedores de certos times.

"Eu só defendo quem estiver me pagando", disse ele. "Fico fora disso."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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