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Músico sírio que fugiu da guerra constrói alaúdes em São Paulo

Rajana Olba dá aulas do instrumento de cordas milenar considerado 'avô do violão'

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São Paulo

Cedro, marfim, imbuia, roxinho, abeto, mogno. Enquanto manuseia com cuidado as finas lâminas de madeira, o sírio Rajana Olba, 35, nomeia cada uma delas e olha para seus diferentes tons com admiração. "Olha que madeira linda", diz, apontando para um jacarandá.

Elas são a matéria-prima do alaúde, instrumento que Rajana toca desde adolescente e que agora também constrói, no quartinho dos fundos da casa onde mora, na zona sul de São Paulo.

"O segredo é ter as medidas certas, a qualidade das madeiras e o fundo, que tem que ser bem fininho, de uns dois milímetros", explica. Apesar da delicada espessura, ele ressalta que o instrumento é resistente. "Quando eu termino, posso jogar no chão e pisar em cima e ele não quebra."

O alaúde, que Rajana descreve como "o avô do violão", é um instrumento de cordas milenar, constituído por uma caixa de madeira em forma de pera, com braço curto de extremidade inclinada e geralmente 11 cordas –cinco duplas e uma simples. É fundamental em grupos de música do Oriente Médio, e a origem de seu nome costuma ser atribuída à palavra "al-oud" (a madeira, em árabe).

Aos 14 anos, após insistir muito, Rajana ganhou um alaúde de sua mãe e treinou sozinho em casa, aproveitando o ouvido musical apurado. Além de eletricista e escultor de pedras para construção, suas outras profissões, tornou-se músico e professor.

No Brasil desde 2015, ele também dá aulas e faz shows. Mas veio a pandemia de coronavírus, e as apresentações foram interrompidas. "Há muito tempo eu queria aprender [a fazer alaúdes] e estava esperando o tempo certo", conta. "É muito difícil encontrar alaúdes no Brasil, o frete para importá-los é muito caro e também não é fácil achar pessoas que façam consertos. Tudo isso me levou a tomar a decisão [de se tornar luthier]."

O sírio Rajana Olba na oficina de sua casa onde constrói alaúdes - Adriano Vizoni/Folhapress

O sírio aprendeu a construir o instrumento da mesma forma que começou a tocá-lo: como autodidata. Recorreu a vídeos do YouTube, mas sua experiência como alaudista o ajudou no processo.

Mesmo não encontrando todas as madeiras usadas na Síria para a fabricação, ele achou opções brasileiras que deram certo.

"Eu molho as madeiras por 24 horas na água, depois dobro e lixo para ficarem retas até encaixarem certinho uma na outra. Quando termino o fundo, começo a fazer o braço, depois faço o tampo, depois preparo as cravelhas e depois as cordas", descreve, enquanto mostra os equipamentos usados em cada etapa. "Cada molde dá um som diferente. Esse é mais grave, esse mais agudo."

Rajana conta que demora de 20 a 30 dias para construir cada alaúde. O preço varia de R$ 2.500 a R$ 5.500, dependendo da matéria-prima usada e do modelo do instrumento.

Seus clientes são brasileiros —alguns deles seus alunos— e a maioria já trabalha com música, mas há pessoas que nunca tocaram nada e decidiram começar pelo alaúde. Ele já enviou instrumentos que fabricou a cinco estados, e, na pandemia, dedicou-se também a dar aulas online.

Rajana deixou a Síria em 2012, no início da guerra civil que já deixou 500 mil mortos e milhões de exilados pelo mundo. Ele fugiu da terra natal para não ser obrigado a prestar o serviço militar e lutar no conflito. Durante três anos, viveu no Líbano, até que em 2015 migrou novamente, desta vez para o Brasil —o único país que, àquela altura, estava concedendo vistos para sírios.

Em terras brasileiras, chegou sem conhecer ninguém nem falar português. Trabalhou como eletricista em São Paulo e como agricultor em uma fazenda do interior do estado. Depois, conseguiu trazer os pais, dois irmãos e uma irmã.

Com o tempo, Rajana voltou a atuar como músico, criou uma banda de música oriental e fez shows também como solista, apresentando-se em espaços como a Biblioteca Mário de Andrade e os palcos das unidades paulistas do Sesc.

O sírio que fugiu da guerra e se tornou um construtor de alaúdes também compõe. Uma de suas canções se chama "A Viagem de um Refugiado". Da música nacional, ouve especialmente choro e samba. "O brasileiro gosta de música árabe e de conhecer outras culturas. Isso me ajudou a continuar com meu trabalho", diz. "Antes de chegar eu não imaginava que a cultura árabe tivesse essa influência aqui."

Em São Paulo, ​Rajana criou a banda Nikkal, composta por músicos brasileiros e imigrantes que tocam flauta, bateria, piano e derbak (um tipo de tambor de origem árabe). No grupo há ainda uma vocalista libanesa e uma bailarina de dança do ventre.

Mesmo que volte a fazer shows em um cenário pós-pandemia, ele pretende manter seu trabalho como luthier. "Gosto tanto de tocar quanto de fazer [instrumentos]. Um completa o outro", afirma. "O alaúde faz parte de mim, está comigo há 22 anos. Traduzo meus sentimentos por ele."

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