Descrição de chapéu refugiados

Famílias mudam estratégia em migração para os EUA e não querem voltar ao Brasil

Perfil dos que deixam o país agora inclui cidadãos qualificados que abandonam carreiras sem intenção de retorno

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Governador Valadares (MG) e Brasília

Gerente de um hotel em Governador Valadares (MG), Eduardo José Fernandes Ramos, 59, foi para os Estados Unidos em 1989 e lá ficou até 2006 —morando um período também no Canadá. A ideia era passar uns anos em território americano e voltar para o Brasil para seguir a vida com o dinheiro que conseguisse guardar.

"Quando você vai para lá e tem uma vida regrada, consegue fazer um bom dinheiro. Eu juntei algum e trouxe", diz, relatando que a quantia lhe possibilitou comprar carro e casa.

Assim como ele, muitas pessoas dessa região mineira, que historicamente concentra o maior número de emigrantes para os EUA, ficavam um tempo fora e depois retornavam. Agora, famílias inteiras estão se mudando sem ter planos para voltar —o próprio Ramos tem três irmãs que continuam morando nos EUA e conseguiram regularizar a permanência no país.

Gerente de hotel, Eduardo José Fernandes Ramos morou nos EUA há muitos anos
Gerente de hotel, Eduardo José Fernandes Ramos morou nos EUA há muitos anos - Pedro Ladeira/Folhapress,

Essa mudança de padrão tem causado, inclusive, o esvaziamento de cidades do leste de Minas Gerais. Em Tarumirim, que tem cerca de 14.500 habitantes, 1.800 famílias deixaram o município neste ano. Em Alpercata, 5% da população foi embora, cerca de 350 pessoas.

"Esperar que as pessoas voltem só por ser a cidade natal deixou de ser importante. Elas não estão mais criando laços com o município", diz o prefeito de Alpercata, Rafael França.

O movimento de famílias que deixam o Brasil tem sido percebido por pesquisadores, políticos, autoridades policiais e por quem acolhe essas pessoas nos EUA. A Folha publicou reportagens nos últimos dias que permitem compreender esse cenário.

Sandra Nicoli, historiadora e mestra em gestão integrada do território, explica que a emigração em Governador Valadares começou nos anos 1960. Essa "cultura" foi se espalhando para os municípios da região a partir do final da década seguinte.

Os anos 1980 registraram um grande crescimento no movimento de pessoas que escolhiam deixar o país devido à crise econômica —o período no Brasil ficou conhecido como a "década perdida". À época, a maioria que migrava era jovem, viajava sozinha e pensava em retornar um dia.

Hoje, o movimento é caracterizado por um número maior de famílias se organizando para morar em definitivo nos EUA. O perfil predominante é de pessoas que buscam serviço braçal, mas há também cidadãos que deixam cargos públicos, empresas e microempresas para trás.

A decisão do retorno não está mais incluída no projeto. Em muitos casos, as pessoas entram de forma irregular, mas há famílias com acesso legal aos EUA.

"São famílias que possuem uma condição financeira mínima, têm casa, carro, uma pequena empresa, propriedade rural, mas não enxergam uma perspectiva de futuro no Brasil. A ideia do retorno não está permeada, [as famílias] querem migrar e ficar", diz a pesquisadora.

Nicoli aponta ainda que, depois de um pico na década de 1980, a emigração voltou a crescer em 2015, quando o cenário econômico, político e ambiental começou a piorar —com o auge desse movimento se dando a partir de 2018.

Governador Valadares e seu entorno, que fazem parte da bacia hidrográfica do rio Doce, foram afetados em 2015 pelo rompimento da barragem de rejeitos de minérios em Fundão, da Samarco, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana.

Com o agravamento da crise econômica e política no país, o crescimento do fluxo migratório continuou, mas foi reduzido em 2020 devido à pandemia e às medidas restritivas a viagens impostas para frear a disseminação do coronavírus. No entanto, muitos dos que haviam decidido emigrar e não o fizeram nesse período se prepararam para deixar o país em 2021, que registrou um salto no número de migrantes.

Nicoli acrescenta que, apesar de a maior parte dos migrantes brasileiros escolher os EUA, desde os anos 2000 há outros destinos em alta, como Portugal, Itália e Inglaterra. Em território americano, Massachusetts ainda é o estado que abriga a maior parte dos expatriados do Brasil.

Vivendo em Middlesex, no estado de Nova Jersey, Marcos Silva, 21, não pensa em voltar ao Brasil. Ele tem pai e dois irmãos morando legalmente nos EUA e hoje trabalha no ramo de construção civil, chegando a receber semanalmente US$ 1.120 (R$ 6.333) —mesmo estando em situação irregular.

"Eu não vejo mais o Brasil como uma morada. Aqui [EUA] é totalmente diferente e a gente tem muito mais oportunidade, estou conseguindo viver tranquilamente", diz. Silva chegou ao país no ano passado e contou com vantagens que nem todos os migrantes possuem: familiares em situação legal e uma estrutura mínima para recomeçar a vida.

Os que não contam com isso frequentemente acabam contraindo dívidas ao entrar no país de forma irregular. Isso porque chegam a pagar até US$ 25 mil (R$ 141,3 mil) para pessoas que promovem a migração clandestina.

O cônsul-geral do Brasil em Boston, Benedicto Fonseca Filho, explicou em telegrama obtido pela Folha via Lei de Acesso à Informação que famílias recém-chegadas aos EUA acabam se hospedando com parentes e amigos em condições precárias. "Muitas vezes em violação às regras de ocupação e de segurança locais, o que tem multiplicado os casos de ameaça de despejo."

Os chamados contrabandistas, pessoas que promovem a migração, em geral arrumam um "jeitinho" para quem viaja. Ramos, por exemplo, em 1989, conseguiu burlar a imigração com um passaporte falsificado.

"Eles tinham o passaporte com visto. Essa página foi colocada no passaporte que tem minha foto. Cheguei por vias 'legais' e fiquei nessa situação até o tempo que o turista pode permanecer no país", conta.

Aldair Martins, morador de Tarumirim, município vizinho à Governador Valadares, já foi para os EUA de forma ilegal e tem um filho morando lá
Aldair Martins, morador de Tarumirim, município vizinho à Governador Valadares, já foi para os EUA de forma ilegal e tem um filho morando lá - Pedro Ladeira/Folhapress

Assim como ele, o produtor rural Aldair Martins, 70, entrou com um passaporte falsificado, embora tenha viajado para uma estadia temporária. No seu caso, os dois filhos já estavam nos EUA. "Hoje eu não penso em ir para lá. Um dia, quem sabe, posso tentar [conseguir legalmente] o visto. Na época, queria ver minhas netas e tinha vontade de ir para conseguir mais alguma coisa", afirma.

O delegado da Polícia Federal Cristiano Campidelli explica que é praticamente impossível falsificar o passaporte desde que um novo modelo do documento passou a ser utilizado. Além de vários mecanismos de segurança, a versão atual possui um chip que impõe obstáculos aos falsificadores.

A atualização, no entanto, não impede estratégias para entrar nos EUA que independam da tecnologia. Segundo Campidelli, muitas pessoas atravessam o deserto, pulam cercas e muros e cruzam rios de barco ou a nado de forma encoberta, para não serem pegas pelas autoridades.

Desde que o então presidente americano Donald Trump determinou o fim da separação de famílias de imigrantes, porém, as pessoas que promovem a emigração passaram a usar crianças.

Dessa forma, cresceu o interesse pelo "cai cai", sistema em que a pessoa vai acompanhada de um parente em primeiro grau menor de idade, entrega-se às autoridades americanas e é liberada para responder ao processo em liberdade.

"Houve um boom do 'cai cai' em 2019, na época do Trump. Mas essa moda antiga, transpondo a fronteira pelo deserto ou pulando cerca, nunca parou —também porque muitas pessoas não têm uma criança para levar."

Há também quem se entregue sozinho aos agentes americanos para fazer uma solicitação formal de asilo. Nesse caso, é comum que os responsáveis por promover a emigração ilegal ensinem aos "clientes" táticas para convencer as autoridades. A estratégia mais comum é a alegação de que o solicitante está sendo ameaçado de morte no Brasil ou foi torturado por agentes públicos, como policiais e políticos.

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