Brasil concede visto humanitário a afegãos que fogem do Talibã

Semelhante ao que existe para sírios e haitianos, procedimento facilita viagem e pedido de refúgio

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São Paulo

O governo brasileiro vai conceder visto de acolhida humanitária a pessoas do Afeganistão que fogem do país, que desde o último dia 15 voltou a ser governado pelo grupo fundamentalista Talibã. A medida facilita a acolhida de pessoas dessa nacionalidade, como já acontece em relação a sírios e haitianos.

Mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares terão prioridade. As embaixadas do Brasil em Islamabad (Paquistão), Teerã (Irã), Moscou (Rússia), Ancara (Turquia), Doha (Qatar) e Abu Dhabi (Emirados Árabes) estarão habilitadas a processar os pedidos desse tipo de visto —o Brasil não possui representação diplomática no Afeganistão.

A decisão foi tomada após reunião do presidente Jair Bolsonaro com os ministros das Relações Exteriores e da Justiça na quinta (2). Na noite desta sexta, as pastas oficializaram a portaria em uma nota conjunta.

O refúgio é uma proteção legal para pessoas que migram devido a perseguição relacionada a raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Em dezembro de 2020, o Brasil reconheceu a situação de “grave e generalizada violação de direitos humanos” no Afeganistão, algo que agiliza o processo de obtenção de refúgio por cidadãos desse país.

Só é possível fazer essa solicitação, porém, estando já no Brasil, e, para a viagem, os afegãos precisam de visto. Até agora, era preciso pleitear o documento de turismo ou o destinado a reunião familiar, mais difíceis de serem obtidos, especialmente para quem sai às pressas de uma situação de crise humanitária.

Os afegãos ainda precisam cumprir certos requisitos e apresentar documentos a alguma embaixada brasileira. O visto humanitário reduz a burocracia e facilita esse trâmite.

Os afegãos que querem migrar ainda precisam enfrentar uma enorme dificuldade: conseguir sair do país. Com os voos internacionais suspensos desde que as tropas americanas se retiraram totalmente e as fronteiras terrestres foram fechadas, alguns têm tentado entrar irregularmente no Paquistão ou no Irã, mas tanto a travessia quanto o caminho até lá são cheios de riscos.

Atualmente, são poucos os refugiados afegãos em território brasileiro: no total, há 162 já reconhecidos e 49 processos em andamento, segundo dados recentes do Ministério da Justiça. Mas, com o aumento no número de pessoas que saem do país após o Talibã ter tomado o controle, o Brasil pode ser uma opção para algumas delas, especialmente às que já têm familiares ou conhecidos por aqui. Uma série de setores se mobilizaram para pedir que o governo federal concedesse visto humanitário aos afegãos em fuga.

Entidades brasileiras de magistradas e magistrados, por exemplo, fizeram um apelo pela acolhida a juízas afegãs juradas de morte pelos talibãs. A Associação Internacional de Mulheres Juízas (IAWJ, na sigla em inglês) pediu à comunidade internacional que acolha dezenas de profissionais que condenaram combatentes do Talibã e agora estão ameaçadas.

A nota conjunta da Justiça e do Itamaraty desta sexta que anunciou a portaria afirma que será levada em conta, entre as prioridades, "a situação particular das magistradas afegãs que foi trazida ao conhecimento do governo brasileiro".

Outra proposta de resgate foi apresentada pela empresa de logística baseada em Dubai FGI Solutions, que atuou na retirada de pessoas de Cabul quando o aeroporto ainda estava aberto.

A companhia afegã pediu ao Itamaraty, no dia 22 de agosto, que aceite temporariamente 400 pessoas. São funcionários da empresa, tradutores, jornalistas, ativistas de grupos de mulheres e outros profissionais que trabalharam para o governo americano e, por isso, estão em potencial risco de se tornarem alvo dos talibãs.

Segundo a FGI, esses afegãos têm direito a pedir asilo nos EUA, mas precisam da acolhida temporária de um terceiro país enquanto seu pedido de visto americano é processado. A empresa se ofereceu para custear a estadia deles no Brasil. O México foi um dos países que aceitaram a solicitação dessa empresa para receber outras centenas de afegãos, mas a companhia afirma que a quantidade de vagas não é suficiente para a demanda.

"Estamos muito felizes que finalmente o governo brasileiro decidiu conceder a possibilidade de visto de acolhida humanitária aos afegãos", disse a advogada especializada em migração Natália Cintra, uma das consultoras da FGI para o caso brasileiro.

Segundo ela, a opção pelo visto humanitário foi a mais adequada. "É uma decisão acertada e plural, pois os efeitos irão beneficiar centenas de afegãos em risco, possibilitando o trânsito regular ao Brasil, o que pode tornar esse trajeto mais seguro, protegendo e salvando vidas."

Juízas escondidas em buracos

A Associação Internacional de Mulheres Juízas informou que 270 mulheres atuavam como magistradas no Afeganistão. Ainda não se sabe quantas viriam para o Brasil.

“Não sabemos quantas já saíram, quantas ainda restam. Essas listas são sigilosas e mudam a cada momento. As que ficaram poderão ser encaminhadas para os países que aceitem acolhê-las”, diz Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

Segundo reportagem do jornal americano The Washington Post, 20 delas conseguiram escapar quando ainda havia voos operando em Cabul e foram levadas para países europeus, após a IAWJ conseguir vistos para elas e suas famílias.

A maioria, porém, continua em risco, mudando de uma casa para outra ou até escondidas em buracos tampados, com dificuldade de acesso a alimentos, conta a juíza brasileira Amini Haddad, integrante da IAWJ. Em sua ofensiva para retomar o poder, o Talibã abriu as portas de prisões de cada cidade conquistada, libertando seus combatentes e outros criminosos; muitos iam atrás de quem os condenou para se vingarem.

“Qualquer um que não concorde com a dinâmica do Talibã está sob risco. Mas essas juízas estão sendo realmente caçadas. Não é um risco percentual, é certa a morte [caso sejam encontradas]”, diz Haddad. “Não podemos abandonar essas mulheres que apenas cumpriram a missão delas.”

Segundo ela, por razões de segurança a forma como ocorrerá o resgate dessas magistradas e suas famílias não será revelada, mas a estratégia está sendo planejada junto com outras nações e organismos internacionais. O aeroporto internacional de Cabul ainda está sem operar —uma equipe do Qatar auxilia o Talibã a restabelecer o terminal— e as fronteiras terrestres estão fechadas.

Familiares de juízas assassinadas em Cabul em janeiro deste ano chegam ao local onde elas foram mortas a tiros
Familiares de juízas da Suprema Corte assassinadas em Cabul em janeiro deste ano chegam ao local onde elas foram mortas a tiros - Wakil Kohsar-17.jan.21/AFP

Os alertas para o risco corrido por essas profissionais já vinham desde antes de as tropas americanas deixarem o país e cresceram após o assassinato de duas juízas do Supremo Tribunal afegão em um ataque em janeiro deste ano, conta Maria Elizabeth Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar (STM). Na época, o então presidente Ashraf Ghani culpou o Talibã, que negou o atentado.

“O Brasil tem tradição de acolhida humanitária, de acolher perseguidos de guerra. Somos signatários de vários tratados internacionais de direitos humanos. É hora de mostrar que eles têm força. Para nós, essa troca cultural é muito rica”, diz Rocha, que também se envolveu nos esforços para o visto brasileiro às afegãs.

Na terça (31), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, enviou um ofício ao chanceler Carlos França declarando que essas afegãs poderiam trabalhar em um programa do Conselho Nacional de Justiça.

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