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Game em app de compras seduz usuário com brindes, em estratégia criticada por vício e frustração

Engajamento artificial produzido por usuários comprometidos com o game infla números da Temu, dizem especialistas

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São Paulo

No canal do Telegram "GATA GAROTA DA TEMU", 14.787 brasileiros distribuem milhares de links dos jogos Farmland e Fishland, disponíveis no aplicativo do ecommerce Temu, todos os dias. Os games oferecem brindes com faixa de preço de R$ 50 a R$ 200 aos usuários que os completarem, mas não informam de antemão o tamanho do desafio.

Ambos os jogos partem da escolha dos brindes, que vão de roupas a utensílios domésticos. A condição para recebê-los é completar uma barra de progressão regando uma plantação ou alimentando peixes. O avanço, porém, fica mais lento, à medida que o usuário se aproxima do objetivo.

É, então, que a Temu oferece uma solução para acelerar o processo: convidar amigos a se inscrever na plataforma de ecommerce, hoje a mais baixada em lojas de aplicativos, ou fazer compras.

No jogo do "Fishland", é necessário acumular ração para alimentar os peixes. Jogo oferece mais ração se o usuário fizer compras no marketplace ou convidar amigos - Reprodução/Temu

Os jogos fazem parte da estratégia de marketing da plataforma de varejo chinesa e ajudaram o marketplace a ter o app mais baixado do setor no Brasil em um mês de atividade. Porém, são criticados por advogados e pesquisadores consultados pela reportagem por confundir o usuário e gerar risco de compulsão.

Pessoas podem passar dias divulgando a Temu ou navegando entre os itens vendidos na plataforma para cumprir missões e saírem de mãos vazias.

Além disso, o número recorde de downloads do app chinês em todo o mundo —que cresceu 1.500% em 2023 em relação ao ano anterior e continua em alta em 2024, de acordo com a plataforma Sensor Tower— pode estar inflado pelo comportamento inautêntico incentivado pelos jogos, de acordo com pesquisadores ouvidos pela reportagem. A evidência disso seria a circulação em redes sociais de links dos jogos Farm Land e Fishland, disponíveis no app.

"Funciona como uma fazenda de cliques", resume o professor de psicologia ocupacional da UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais, Matheus Viana Braz, que estuda os microtrabalhos na internet. Braz se refere a sites que recebem pedidos de donos de perfis e passam a trabalhadores cadastrados as demandas de cliques —sejam curtidas, compartilhamentos ou visualizações de vídeos.

Procurada pela Folha, a Temu afirma participar de 75 mercados pelo mundo. "Reconhecemos que nossa abordagem mobile-first –quando o projeto é pensado primeiro para atender dispositivos móveis e só depois adaptado para outras plataformas– e o design de última geração para experiência do usuário podem ser novidade para alguns clientes." A empresa passou a fazer entregas no Brasil em junho.

O ecommerce chinês diz em nota que os elementos de gamificação em seu aplicativo, como ofertas por tempo limitado, rodízios de prêmios e jogos interativos, "são inspirados em atividades familiares frequentemente encontradas em feiras ou shopping centers".

O jogo, porém, tem gerado relatos de frustração nas redes sociais. A estudante Nicolly Azevedo relata no TikTok como passou 3h35 no jogo da fazendinha da Temu, após receber um link do jogo com promessas de brindes por regar uma plantação virtual e ter a impressão de que seria fácil.

"No começo, você rega uma plantinha com duas águas e consegue R$ 10, depois vocês precisa de quatro águas para regar a plantinha que vale R$ 5, quando você percebe, a plantinha não vale nada", descreve. "Depois, você precisa chamar seus amigos, é um esquema de pirâmide."

Tanto no jogo da fazenda como no de alimentar os peixes, a situação é parecida com o paradoxo de Zenão, segundo o qual Aquiles jamais venceria uma corrida de uma tartaruga após dar uma vantagem para o anfíbio, considerando que o herói grego diminuiria a distância pela metade a cada período de tempo.

É o que ocorre nos jogos da Temu: à medida que o usuário avança, o valor dos itens conquistados cai pela metade e o número de ações por etapa dobra. Se o usuário deixa de entrar no app com a periodicidade indicada no jogo, ainda perde recursos cruciais para atingir o objetivo final.

No jogo do peixe, por exemplo, a primeira ação completa 40% da barra. Após 20 dias de jogo, a maranhense Bianca Gomes, 27, chegou a um estágio em que faltam 0,2% da barra de progressão para receber os brindes. "Li que são 100 cliques para completar 1% neste percentual", disse à Folha.

Relatos em inglês no Reddit, corroboram a progressão geométrica na dificuldade do jogo. Usuários relatam passar de três a quatro meses para vencer o jogo pela segunda ou terceira vez. A Temu desembarcou nos EUA em fevereiro.

A professora de inglês Lara Amaral, 36, diz que concluiu o Fishland em dez dias, após acelerar o processo convidando mais de 15 amigos pelo WhatsApp. Ela ganhou uma pochete e uma torre de brinquedo para o filho. Agora, está no segundo ciclo.

As redes sociais estão lotadas links únicos dos games da Temu, de forma semelhante ao funcionamento de marketing de afiliados.

A reportagem encontrou 560 tweets com links de jogos da Temu no X publicados em 30 minutos no fim da tarde da quarta-feira (29) —a frequência chega a quase 18 tweets por minuto, e havia publicações em inglês, espanhol, japonês, coreano e português. As primeiras menções a Farmland e Fishland circulam desde 24 de fevereiro de 2023, quando o marketplace não operava no Brasil e nos EUA.

Não foi possível continuar contando as publicações porque a busca do X bloqueou a navegação em função do excesso de tweets.

As publicações em português do Brasil, contudo, ainda estão começando a se multiplicar no X. Passaram de 41 em junho para 175 em julho —na rede social de Elon Musk, em que o conteúdo pornográfico foi liberado, há contas que prometem até trocar imagens íntimas para quem enviar um print comprovando o registro no app da Temu.

É, porém, no Telegram e no WhatsApp, que o ecommerce, de fato, avança sobre o mercado brasileiro. A plataforma de monitoramento Palver indica que mais de 8.000 mensagens com links da Temu circularam por 208 grupos de WhatsApp públicos e alcançaram 71 mil usuários.

Para o professor da USP Gilson Schwartz, que estuda a economia das mídias, a estratégia da Temu é uma versão digitalizada da estratégia de revendedores, adotada por Avon, Tupperware e outras marcas. "O consumidor vira um trabalhador, um empreendedor, um representante comercial, e ajuda na distribuição e no próprio marketing, no boca a boca."

Para o especialista, essa situação é elevada ao extremo na lógica da internet atual. "Há uma espécie de uberização do consumo, em que o indivíduo pensa estar em rede, mas no fundo é manipulado, como um ratinho que corre atrás de estímulos e recompensas."

Viana Braz, da UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais), alerta que não é tão simples obter ganhos expressivos nesses microtrabalhos da internet. "Muitos trabalhadores que buscam renda extra online acabam abandonando com muita frequência essas atividades antes de receber, por se frustrarem com as expectativas geradas."

Na análise do pesquisador , a estratégia da Temu busca aumentar o engajamento do público se servindo de interações falsas. "É algo que já vimos em outros aplicativos chineses."

Para advogados do consumidor consultados pela reportagem, a estratégia da Temu pode configurar as seguintes infrações do consumidor: falta de informação na oferta, propaganda enganosa, eventual venda casada (já que precisa comprar coisas ou convidar amigos), e exigência de vantagem manifestamente excessiva.

A colunista da Folha Maria Inês Dolci afirma que é obrigação da empresa detalhar de forma clara as condições da promoção. "O consumidor, caso não receba o prêmio ou se sinta enganado, deve ligar ao canal de atendimento, que deve estar indicado no site, ou protocolar reclamação no Consumidor.gov.br."

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