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O que a teoria da seleção natural e a física quântica têm em comum

A viagem de Darwin ao reino quântico

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Rafael Chaves

O conceito de reducionismo – por mais complexos que sejam os fenômenos, eles sempre podem ser descritos em termos de seus componentes individuais – é central em ciência. Por exemplo, para entender o corpo humano, temos que nos deter sobre seus órgãos, uma compreensão que requer entender o conjunto de tecidos, o funcionamento das células e as estruturas que as compõem, como membranas, citoplasma e núcleo, e assim consecutivamente.

Somos inevitavelmente levados ao comportamento das moléculas, dos átomos e de seus constituintes indivisíveis: ao mundo microscópico regido pela mecânica quântica e suas ilustres e estranhas consequências, como superposições, emaranhamento e gatos aparentemente vivos e mortos "ao mesmo tempo". Mas então por que não experenciamos o mundo da mesma forma lisérgica com a qual ele se manifesta no nível fundamental da natureza? Seria esse o limite do reducionismo científico? Dois reinos, o micro e o macro, regidos por regras completamente distintas?

Arte ilustra em traços finos em preto e branco um gato listrado deitado dentro de uma caixa
Ilustração: Lívia Serri Francoio - Instituto Serrapilheira

No cerne dessa incongruência está o fato de que objetos regidos pela mecânica quântica são indecisos ao extremo — podem estar em uma superposição, ou seja, mesmo se soubermos tudo o que há para saber sobre eles, ainda assim só poderemos fazer predições probabilísticas a respeito de seu comportamento. A cada vez que observamos essas criaturas tão peculiares, podemos encontrá-las aqui ou acolá.

Para ilustrar as consequências bizarras caso tentemos extrapolar isso ao nosso cotidiano, o físico austríaco Erwin Schrödinger inventou seu mais famoso experimento imaginário: um gato é disposto numa caixa fechada com um átomo, um martelo e um frasco selado com gás venenoso. De início, o átomo está em seu estado excitado, quer dizer, ele não está em seu estado de repouso máximo, aquele com menor energia. No entanto, se o átomo espontaneamente decair para seu nível menos energético, ele vai emitir um fóton (uma partícula de luz) no processo. Esse fóton faz com que o martelo se solte, quebrando o frasco que libera o gás e mata o bichano.

Quer dizer, se o átomo se mantiver como está, o gato está vivo. Se o átomo decair, ele está morto. Sendo um ente quântico, o átomo pode estar em uma superposição de ter ou não decaído, o que implica que enquanto não abrirmos a caixa e observarmos o que dentro dela se passa, o gato pode estar vivo e morto. Uma hipótese que mesmo o mais fervoroso fã de séries de zumbis teria dificuldade em imaginar.

Por incrível que pareça, porém, a aparência do mundo que nos rodeia emerge desse vasto cardápio de possibilidades e incertezas. Dentro da caixa temos ar e à medida que os átomos que compõem o gato interagem com as moléculas do ambiente, o felino se emaranha nessas moléculas. Isso quer dizer que as propriedades quânticas não estão mais localizadas no gato, mas estão deslocalizadas no todo. Os efeitos quânticos ainda estão lá, mas agora difusos em incontáveis partículas. A menos que possamos acessar não apenas o gato mas também o zilhão de moléculas que com ele interagiram (algo impraticável), a superposição de vida e morte se esvanece e, como esperaríamos, a cada vez que observarmos o bichano nós o encontraremos em apenas uma das duas possibilidades.

Recuperamos assim, ainda que parcialmente, o reducionismo. Quer dizer, as características do mundo macroscópico são, sim, uma consequência direta das propriedades do mundo quântico microscópico. A esse processo chamamos decoerência: a perda de superposição de um objeto quântico por sua interação com o ambiente, o que explica a transição da fantástica fábrica quântica para sua versão clássica, aquela a que estamos acostumados, ou seja, o mundo como o enxergamos.

Isso acontece porque a decoerência atua de forma tanto mais rápida quanto maior é o objeto em questão. Enquanto para elétrons, átomos ou mesmo moléculas, manter sua superposição é algo factível e observado rotineiramente nos mais variados experimentos, realizar semelhante feito com objetos do cotidiano é inviável. Mesmo um grão de areia superposto em duas posições separadas por um centímetro irá perder suas características quânticas em um quatrilionésimo de quatrilionésimo de segundo (um número com 30 zeros depois da vírgula), um tempo instantâneo para todos os efeitos práticos.

No entanto, por si só, a decoerência deixa em aberto a possibilidade de que, dependendo do observador, eu ou você, os resultados podem ser diferentes para o mesmo evento: ao abrirmos a caixa, um diz que o gato morreu, enquanto o outro chega à conclusão contrária, uma realidade paradoxal e subjetiva que nunca poderemos experimentar. Notou-se que as propriedades a que estamos acostumados são aquelas mais bem adaptadas à interação com o ambiente, não só sobrevivendo à decoerência mas, ao longo do processo, fazendo o maior número possível de cópias de si mesmas. É uma dinâmica parecida (ao menos conceitualmente) à seleção natural das espécies proposta por Charles Darwin, razão pela qual a esse processo chamamos darwinismo quântico.

Na perspectiva darwiniana, podemos atribuir um estado bem definido ao gato não porque de fato ele esteja vivo ou morto (afinal, de acordo com a quântica, antes de o observarmos ele poderia estar em uma superposição): é apenas pela proliferação de cópias que a informação que observamos se torna redundante, explicando a emergência do mundo objetivo no qual eu e você concordamos sobre o que se passa ao abrir a caixa.

Para se ter uma ideia, em apenas um segundo sob a influência da luz solar, um grão de areia imprime sua posição em mais de dez mil bilhões de fótons. É essa proliferação incessante de informação que faz com que diferentes observadores, ao receberem a luz espalhada pelo objeto, possam concordar entre si sobre o que estão testemunhando. Afinal, se eu digo que a lua está em certa posição, todos os amantes do céu noturno hão de chegar a uma conclusão semelhante.

Certa vez, contrariado com as bizarrices quânticas, Einstein perguntou: "Você realmente acredita que a lua só existe quando olhamos para ela?". Como disse o divulgador de ciência britânico Philip Ball, a verdade é que "o universo está sempre observando".

Da próxima vez que escutar alguma coisa sobre cura quântica, coach quântico ou alguma outra barbaridade sem fundamento algum, lembre de Darwin e sua mais psicodélica viagem ao reino quântico. Sim, o mundo é quântico. Pena que a forma como o vivenciamos, não.

*

Rafael Chaves é físico, pesquisador do Instituto Internacional de Física da UFRN e autor do livro de divulgação "Incerteza Quântica".

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