Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Diga-me quem premias e te direi quem és

Mais do que valorizar o trabalho de um indivíduo, prêmios como o Nobel sinalizam apostas da comunidade científica

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Edgard Pimentel

Outubro é um mês divertido para a ciência. O anúncio dos ganhadores e ganhadoras dos diversos prêmios Nobel movimenta a comunidade e causa uma mistura de admiração e orgulho. Permita-me então fazer uma pergunta, caro leitor: o que você faria se estivesse dando aula e recebesse a notícia de que havia ganho o prêmio Nobel?

A física franco-sueca Anne L’Huillier, depois de ter sido avisada que fora laureada com o prêmio em física de 2023 (juntamente com Pierre Agostini e Ferenc Krausz), continuou a dar a aula que estava dando! Não fez outra coisa. Não perturbou sua rotina. E deveria? Pergunto de outra maneira: pra que serve um prêmio Nobel? Pra que serve qualquer distinção científica?

Arte ilustra a professora Anne L’Huillier, uma mulher branca de cabelos grisalhos, segurando um buquê de flores em frente a um quadro negro com equações e falando para uma turma
Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

Para discutir a finalidade de um prêmio como o Nobel, vamos fazer uma visita ao pensamento de outro físico: o americano Thomas Samuel Kuhn (1922-96). Autor de "A estrutura das revoluções científicas", Kuhn defendia que a ciência se estrutura em torno de paradigmas. E que a substituição de um paradigma corrente por outro se deve às revoluções científicas. O exemplo canônico é a chamada revolução copernicana, que substituiu a visão geocêntrica do mundo pela heliocêntrica.

A instalação de um novo paradigma seria motivada por descobertas revolucionárias, que levariam a comunidade cientificamente relevante a pensar de forma diferente. Ora: o que significa "comunidade cientificamente relevante"? Basicamente, estamos nos referindo ao conjunto de pessoas de uma determinada disciplina que aponta as direções da pesquisa: os editores e pareceristas dos principais periódicos, os membros dos painéis que avaliam e promovem a ciência, as pessoas que fazem modestas sugestões de composição desses painéis, e… o comitê que seleciona os vencedores dos diversos prêmios. Inclusive do Nobel.

Nesse sentido, o Nobel não serviria apenas para valorizar o trabalho de um indivíduo, mas também marcaria a importância do paradigma ao qual o referido cientista está associado. A distinção é um reconhecimento de suas descobertas e das respostas que ele formulou. Mas ela também legitima as perguntas feitas por sua escola (ou seu grupo de pesquisa). E sinaliza que aquele conjunto de perguntas é a aposta da comunidade científica.

No caso da matemática, essa situação é bastante evidente. Um dos prêmios de referência da profissão é a Medalha Fields. Entregue a cada quatro anos, por ocasião do Congresso Internacional de Matemáticos, a condecoração reconhece profissionais com idade inferior a 40 anos. A razão é explicada pelo matemático canadense John Charles Fields, que dá nome à distinção: em parte, a medalha reconhece o trabalho já realizado, mas também serve como motivação para o trabalho futuro.

Não se trata apenas de reconhecer o mérito daquilo que já foi feito, mas sobretudo sinalizar para a comunidade matemática que aquela direção de trabalho deve ser encorajada e perseguida. Aquela forma de pensar a matemática deve ser entendida como canônica. Há quem sugira que, em anos recentes, esse caráter da Medalha Fields é mais proeminente. Isso porque, mais do que premiar o indivíduo que a recebe, ela acaba por coroar sua escola de formação como um pilar da boa matemática.

Se o incentivo a determinado paradigma está presente no caso de uma distinção de meio de carreira, como a Fields, ele é muito mais explícito no contexto do Prêmio Abel. Instituído em 2002 e distribuído anualmente desde 2003, esse prêmio não tem limite etário e tem sido atribuído a matemáticos em estágios mais avançados da carreira. Consequentemente, e talvez sem querer, muito mais do que contribuições puramente científicas, ele distingue a formação de uma comunidade em torno de uma forma de fazer matemática. Curiosamente (ou nem tanto), há intersecção considerável entre os ganhadores da Medalha Fields e do Prêmio Abel.

E se esse fenômeno se dá em nível global, é claro que também ocorre num um país com matemática internacionalmente competitiva como o Brasil. No nosso caso, o prêmio de referência foi instituído pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e vem sendo distribuído a cada dois anos, desde 2013. Trata-se do Prêmio SBM, e distingue artigos de pesquisa publicados por pesquisadores baseados no Brasil. Entre os agraciados com essa distinção está o matemático Artur Ávila, que recebeu a Medalha Fields em 2014.

Alguns meses atrás, quando recebi a notícia de que o vencedor da edição de 2023 do Prêmio SBM era o meu amigo Damião Araújo, minha reação foi inequívoca: a comunidade matemática nacional produzia consenso em torno de uma escola, em torno de uma maneira de pensar a belíssima área das Equações Diferenciais Parciais. O prêmio reflete mérito individual, mas também aponta a direção.

Mas se é assim, e se a distinção que nos é atribuída por nossos pares é um incentivo a formas de fazer ciência, não há escolha a não ser voltar para a sala de aula e continuar a lecionar. Afinal, é ao atrair quem está nos bancos da escola que a ciência se desenvolve e as sociedades avançam. Anne L’Huillier já percebeu isso. Tomara que mais gente também o perceba.

*

Edgard Pimentel é professor do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra e pesquisador do CMUC.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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