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Quando surgiram as cachoeiras da Amazônia?

Quedas-d'água podem revelar parte da evolução do rio Amazonas

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Pedro Val

Quem já foi à Amazônia certamente se deparou com cachoeiras exuberantes, espalhadas por toda a região. Nos grandes rios, são pontos de produção de energia hídrica; nos igarapés — nome que lá recebem os rios menores, do tupi "caminho de canoa" —, atraem turistas e locais para fins recreativos. Podem, ainda, delimitar a distribuição geográfica de espécies aquáticas, constituindo barreiras biogeográficas para algumas espécies. Mas a que se deve sua existência? Quando foi que surgiram? As respostas a essas perguntas podem ajudar a desvendar a história evolutiva do rio Amazonas.

Cachoeiras são quebras verticais, ou degraus, no leito dos rios. No caso da Amazônia, elas atingem 10 metros ou mais. Para entender como uma cascata desse tamanho pode surgir, imagine uma piscina sem manutenção: à medida que ela vai secando, maior é a queda entre sua borda e a água. Agora, imagine um igarapé suave que flui ininterruptamente até sua confluência com o rio principal; se este último, por qualquer motivo, sofre um rebaixamento de dezenas de metros, forma-se uma cachoeira entre ele e o igarapé.

Arte ilustra uma cachoeira; um barquinho se aproxima da queda
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Quando o nível dos rios principais — no caso hipotético, a piscina — é rebaixado ao longo do tempo geológico, diz-se que houve uma queda do nível de base. Assim como uma piscina vazia deixa ver seus azulejos, um rio cujo leito foi rebaixado põe à mostra seu substrato rochoso. Já reparou como no leito de cachoeiras e corredeiras há rochas expostas?

O degrau rochoso no leito do rio é um aumento de declive, uma "quina" que é, então, erodida, propiciando o seu recuo. Portanto, apesar de parecer que não se movem, as cascatas recuam ao longo do tempo geológico a velocidades lentas e bem menores que um milímetro por ano.

Imagine, portanto, que uma única queda d'água gerada na foz de um rio pode se multiplicar em dezenas de outras à medida que recua rio acima. Após milhões de anos, o processo resulta em dezenas de cachoeiras espalhadas por uma paisagem. Mais fascinante que isso é contemplar que, utilizando equações que modelam a erosão no leito rochoso se um rio, é possível simular a migração das quedas d’água a partir da origem e, assim, chegar muito próximo da distribuição geográfica atual. Desse modo, pode-se quantificar o tempo desde a primeira queda do nível de base.

É provável que dezenas de cachoeiras na Amazônia tenham resultado de uma única queda do nível de base no passado geológico. Como um efeito dominó, uma queda do nível de base do rio Amazonas geraria degraus em todos os seus afluentes. Em seguida, esses degraus se propagariam rio acima, transmitindo as cascatas para os igarapés de seus afluentes e destes para os córregos, e assim por diante. Prova disso é que dezenas de cachoeiras na calha norte do baixo rio Amazonas estão na mesma elevação apesar de distarem dezenas a centenas de quilômetros umas das outras, o que ocorre por um processo de queda do nível de base no rio principal, ou seja, elas têm uma única origem.

Mas o que seria capaz de gerar uma queda do nível de base no Amazonas? Existem alguns mecanismos plausíveis, como quedas do nível do mar global em períodos glaciais, talvez a hipótese mais concorrida entre os geocientistas. Muito gelo nas geleiras, menos água nos oceanos.

Assim, um período glacial poderia rebaixar o nível global do mar e, consequentemente, do rio Amazonas — as cachoeiras teriam então se iniciado com as glaciações nos últimos 2,6 milhões de anos, chegando até a última, há aproximados 20 mil anos. Mas tal fenômeno seria potente o bastante para originar cachoeiras nos leitos dos igarapés? Até o momento, poucos estudos puseram essa pergunta à prova por meio da quantificação com base em processos erosivos.

Outro mecanismo plausível estaria associado à evolução geológica da bacia. Antes da configuração atual, a bacia Amazônica era constituída de duas partes, uma que fluía em direção ao Atlântico pela foz atual, e outra, muito maior, que fluía também para o Atlântico pela foz do atual rio Orinoco, na Venezuela. O divisor entre essas protobacias encontrava-se próximo a Manaus. Porém, saber quando ele foi rompido para unir as duas bacias ainda é uma questão controversa. Essa união teria multiplicado a vazão hídrica do leste Amazônico e consequentemente teria promovido o rebaixamento do seu leito. Neste caso, a queda do nível de base no leste Amazônico se situaria em algum momento dos últimos nove milhões de anos.

Essas são apenas duas hipóteses dentre várias outras mais complexas. A conclusão é que, apesar de, na maioria das vezes, os geólogos buscarem evidências geocronológicas nas rochas e sedimentos, também podemos utilizar as paisagens, detentoras de memórias geológicas, e os princípios físicos que as governam. No caso das cachoeiras da Amazônia não é diferente. Resta saber quando e por que elas se formaram, e as respostas podem ser a chave para desvendar parte da evolução geológica e até biológica da maior bacia hidrográfica do planeta.

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Pedro Val é geólogo e professor na Queens College, City University of New York.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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