Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Descrição de chapéu Todas maternidade

Um parecer no paraíso?

Complexidades enfrentadas por mães cientistas mostram que, na academia, o sucesso é exclusivo para quem se encaixa em um único padrão

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Fernanda Stanisçuaski

Ao fechar as cortinas de 2023, a academia foi abalada por um incidente emblemático. Uma pesquisadora, ao solicitar uma bolsa, recebeu um parecer de um consultor externo do Conselho Nacional Científico e Tecnológico (CNPq) alegando que suas gestações teriam "atrapalhado" certos aspectos de sua carreira. E, não, esse não foi um caso isolado que ocorreu em meio a um paraíso na academia e na ciência brasileiras.

A utilização da palavra "atrapalhar", impregnada de preconceitos, evidencia de maneira contundente como a maternidade é percebida e tratada no cenário acadêmico. O episódio, longe de ser uma exceção, lança luz sobre as complexidades diárias enfrentadas por mães na academia. Essa prática discriminatória, enraizada em estruturas antiquadas e estereótipos persistentes, ocorre ao longo da trajetória de muitas mães acadêmicas.

Colagem ilustra uma mulher negra de vestido amarelo segurando uma bebê de vermelho, em meio a uma paisagem montanhosa
Arte: Catarina Bessell. As pessoas ilustradas na obra são a geóloga Adriana Alves e sua filha Serena. - Instituto Serrapilheira

Precisamos questionar não apenas as circunstâncias específicas desse incidente, mas a estrutura mais ampla que permite tais avaliações. A maternidade exerce, sem dúvida, um impacto significativo nas carreiras das mulheres, especialmente em uma sociedade na qual elas são predominantemente responsáveis pelos cuidados familiares. No entanto, o entrave na progressão profissional das mães não é uma inerência da maternidade em si, mas uma consequência de um modelo de carreira ultrapassado e ineficiente.

Vivemos em um ambiente onde a trajetória de carreiras "promissoras", sem pausas ou desvios, é moldada pela rigidez da academia. A maternidade é interpretada como um obstáculo, perpetuando a ideia de que carreira e família são incompatíveis (para as mulheres). Desde sempre, as mães têm perdido seu espaço na academia, sendo excluídas devido a uma cultura que confunde dedicação com sacrifício.

Mas as mães acadêmicas já deram um passo à frente, não como vítimas dessa intransigência, e sim como agentes transformadores. O movimento brasileiro Parent in Science, assim como outros coletivos e grupos no país todo, surgiram em meio a um contexto desafiador para promover mudanças. As mães na academia não estão em busca de privilégios, mas de um ambiente justo e que aceite trajetórias que integrem de maneira equilibrada maternidade e carreira. E as lutas das mães têm gerado resultados concretos.

Em 2021, a plataforma Lattes, que concentra os currículos de cientistas brasileiros, incorporou um novo campo denominado "licenças". Essa atualização, que exige a aceitação das pausas na jornada acadêmica como eventos naturais na vida, abriu portas para reformular avaliações acadêmicas. Por exemplo, a inclusão de fatores de correção nas notas de currículos ou ampliação dos períodos avaliados nas seleções, concursos e editais.

No entanto, é fundamental universalizar essas regras, garantindo sua aplicação consistente e estabelecendo protocolos claros para evitar interpretações ambíguas. Em 2023, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) atualizou a Plataforma Sucupira, base de dados de programas de pós-graduação do Brasil, incluindo campos específicos para informações sobre licenças. Essa mudança impacta as avaliações da CAPES, permitindo a flexibilização dos critérios de avaliação, especialmente para discentes que enfrentam resistência em exercer o direito de licença maternidade, sob alegações de possíveis efeitos nos tempos de conclusão dos cursos, fator significativo nas avaliações da CAPES.

Ainda em 2023, o Ministério da Educação lançou um grupo de trabalho dedicado a desenvolver uma Política Nacional de Permanência Materna nas Instituições de Ensino Superior Brasileiras, reconhecendo oficialmente a categoria "mãe" dentro do ambiente acadêmico.

Foram avanços concretos nos últimos anos. Mas sabemos que uma transformação abrangente não ocorrerá da noite para o dia e exige um esforço contínuo. Além disso, nesse diálogo em busca de mudanças é essencial entender que a interseccionalidade da maternidade com fatores como raça amplifica as disparidades enfrentadas pelas acadêmicas.

As experiências das mães na academia são diversas e moldadas por múltiplas identidades interseccionais, basta ver que mulheres negras e indígenas seguem ausentes dos postos mais altos das bolsas do CNPq. Assim, enfrentar os desafios impostos por práticas discriminatórias e questões sistêmicas exige uma abordagem detalhada e abrangente que considere a interação complexa de vários fatores.

É imperativo que a academia reconheça e valorize a diversidade de trajetórias, desmantelando a concepção antiquada de que o sucesso é exclusivo para quem se encaixa em um único padrão.

*

Fernanda Staniscuaski é professora do Instituto de Biociências e pesquisadora do Centro de Biotecnologia da UFRGS. Mãe de três guris, é fundadora e coordenadora do Movimento Parent in Science.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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