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Como as plantas pegaram emprestados genes de fungos e bactérias

Novo estudo mostra a complexidade que pode emergir da fusão de coisas simples no processo de evolução

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Luiz Eduardo Del-Bem

Nos primórdios da teoria evolutiva, Charles Darwin concebeu a diversificação das formas de vida a partir de ancestrais comuns como uma grande árvore, a árvore da vida. Nesse processo, novos ramos surgem de um galho que, por sua vez, se conecta a outros, até o tronco fundamental, a origem comum de todos os organismos. Nessa visão, a evolução seria um processo de herança vertical, no qual o material genético fluiria de uma geração para a seguinte, acumulando mudanças ao longo do tempo.

Durante o último século, essa perspectiva foi desafiada. Em 1928, o bacteriologista Frederick Griffith publicou seu hoje clássico experimento que comprovou a capacidade das bactérias em trocar genes. Naquela época, os resultados eram difíceis de compreender, pois ainda não se conhecia a base física da hereditariedade, agora identificada como os ácidos nucléicos DNA e, em alguns vírus como o da Covid, RNA.

Arte ilustra um retrato antigo de pessoas de roupa social, mas os rostos são plantas
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Griffith mostrou que o material genético de bactérias patogênicas – aquelas com potencial de desencadear doenças em seus hospedeiros – isolado das células poderia transformar bactérias não-patogênicas em patogênicas. Isso indicava a possibilidade de herança horizontal do material genético responsável pela patogenicidade, ou seja, entre linhagens diferentes e sem envolver a reprodução. As diferentes bactérias eram, portanto, capazes de "trocar" genes.

Por muitas décadas, biólogos consideraram raro esse processo, e restrito a bactérias. Nos primeiros anos deste século, no entanto, começaram a surgir evidências sugerindo que eucariotos (organismos cujas células têm núcleo e uma estrutura mais complexa), especialmente unicelulares, também poderiam adquirir genes de outros organismos, em um processo denominado transferência gênica horizontal. O impacto desse processo na evolução de eucariotos multicelulares, compostos por diversos tipos de células organizadas em tecidos, como animais e plantas, permaneceu pouco explorado e compreendido.

Em fevereiro desse ano, uma parceria entre meu grupo de pesquisa na UFMG e a Universidade Estadual do Michigan (EUA) avançou mais um pouco nesse conhecimento. Por meio de sofisticadas análises e comparações do genoma de plantas e algas de vários tipos, publicamos um estudo inédito e, de certa forma, inusitado: ao que tudo indica, plantas também foram capazes de trocar genes com fungos e bactérias em seu processo evolutivo. Mas como chegamos a essa descoberta?

Nos últimos 15 anos, tenho me dedicado a investigar a evolução das características bioquímicas das plantas, como sua capacidade de sintetizar e degradar carboidratos. Essa curiosidade surgiu ao perceber que a maior parte da biomassa do nosso planeta é composta por carboidratos vegetais, como a celulose. Estima-se que as plantas terrestres contenham 80% da matéria viva na biosfera e que, em geral, os carboidratos representam três quartos da sua massa seca.

Isso faz sentido, uma vez que o processo de fotossíntese, responsável por sustentar a maior parte da vida na Terra, produz açúcares a partir do gás carbônico do ar. Portanto, não seria exagero afirmar que vivemos em um planeta dominado por moléculas de açúcares ligadas entre si em diversas combinações.

Na nossa pesquisa, decidimos analisar a evolução de todos os tipos de enzimas capazes de "quebrar" ligações químicas de carboidratos em plantas. Já sabíamos que elas possuem pelo menos 40 tipos de genes diferentes que codificam enzimas capazes de quebrar carboidratos. Cada tipo de gene chega a ter várias dezenas de cópias diferentes, de tal maneira que uma planta angiosperma atual, aquela que possui flores, dedica mais de 1% do total de seus genes somente para essa função.

Sabíamos também que, quando as primeiras algas eucarióticas surgiram, há mais de um bilhão de anos, o repertório de enzimas capazes de hidrolisar carboidratos era pequeno, composto de apenas algumas dezenas. Algumas dessas enzimas mais antigas, por exemplo, são ligadas à quebra do amido, a reserva energética fundamental da linhagem das plantas. Esse achado nos levou a uma pergunta óbvia: se seus ancestrais remotos tinham apenas alguns poucos tipos dessas enzimas, de onde veio a ampla variedade daquelas que quebram carboidratos nas plantas atuais?

Para tentar responder, comparamos genomas da linhagem das plantas com todos os genomas conhecidos atualmente, dos mais diversos tipos de organismos. Para nossa surpresa, a maioria das enzimas que não existiam nos primeiros ancestrais das plantas tem alta similaridade com enzimas de bactérias ou fungos.

Esse resultado muito provavelmente indica que, ao longo da evolução das plantas, múltiplos eventos de transferência horizontal de genes vindos de fungos e bactérias moldaram a capacidade bioquímica desses organismos de lidar com carboidratos. Talvez os ecossistemas que conhecemos, que dependem de plantas fixando carbono do ar via fotossíntese, sequer existiriam se não fosse uma ajudinha genética de bactérias e fungos microscópicos.

Levantamos a hipótese de que a maioria desses eventos ocorreram quando os ancestrais das plantas ainda eram algas unicelulares que estavam iniciando a colonização do meio terrestre, em ecossistemas microscópicos onde viviam intimamente associadas a fungos e bactérias. É surpreendente concluir que possivelmente todas as florestas atuais descendem diretamente de microflorestas, ecossistemas terrestres microscópicos onde microalgas adquiriram genes de outros microrganismos com os quais conviviam.

Este é um dos primeiros exemplos na biologia moderna que demonstram que as altamente elaboradas capacidades celulares dos seres eucarióticos complexos podem ter se originado por meio da aquisição em série de genes oriundos de diversos tipos de microrganismos. Teriam, portanto, "pegado emprestado" genes de seres distintos em seus processos de evolução.

Ao contrário do que Darwin imaginou no século 19, a vida não evolui exatamente como uma árvore, mas como uma rede complexa na qual ramos muito distantes podem interagir trocando genes. Tal processo de aquisição de genes de diversas fontes pode ter sido extremamente importante na transição de vida microscópica e unicelular para vida macroscópica e composta por inúmeros tipos distintos de células, como a humana.

Talvez estejamos começando a descobrir que a complexidade pode emergir por intermédio da fusão de muitas coisas simples. No fundo, as plantas são feitas de um pouco de DNA de fungos e bactérias que as ajudou a criar o planeta no qual nossos ancestrais primatas evoluíram, saltando de galho em galho tal qual os genes na árvore da vida.

*

Luiz Eduardo Del Bem é geneticista e professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG).

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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