Darwin e Deus

Um blog sobre teoria da evolução, ciência, religião e a terra de ninguém entre elas

Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Uma entrevista com Carol Chiovatto sobre 'Árvore Inexplicável'

Autora brasileira explica razões para mistura entre ciência e fantasia na obra

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Como já contei faz algum tempo na minha coluna semanal nesta Folha, tive a sorte de me divertir e me emocionar em igual medida com a leitura de "Árvore Inexplicável". O romance da escritora brasileira Carol Chiovatto une ciência e fantasia para falar dos traumas da pandemia, das ameaças à biodiversidade brasileira -- e, principalmente, de coragem e esperança.

Troquei algumas mensagens com ela sobre os temas do livro e pude reproduzir muito pouco de suas interessantes respostas no espaço exíguo da coluna. É por isso que aproveito o blog para publicar o nosso breve papo na íntegra. Confira abaixo.

Capa do livro 'Árvore Inexplicável', de Carol Chiovatto
Capa do livro 'Árvore Inexplicável', de Carol Chiovatto - Reprodução

--------

Darwin e Deus - Fiquei muito curioso para saber o que a levou a incluir os temas científicos no romance, algo que eu realmente não estava esperando e foi uma grata surpresa. Vi as referências ao primatologista Frans de Waal e à sua amiga cientista nos créditos do livro. O estalo para seguir essa linha veio deles ou são fontes consultadas depois que a ideia da trama já estava na sua cabeça?

Carol Chiovatto - A princípio, o que me fez escolher o tema científico foi o desejo de escrever outra fantasia urbana, mas que não se parecesse com "Porém Bruxa", meu primeiro livro. Como este último adota o ponto de vista de que todas as religiões são verdade, achei que uma abordagem laica e científica em "Árvore Inexplicável" ajudaria a distanciar as duas narrativas.

Outro fator que me levou a trabalhar a temática foi estarmos vivendo num governo anticiência na época, inclusive com imensos cortes de verba nas áreas de pesquisa e educação, e colhemos os frutos podres disso já logo na pandemia. Na época, eu estava terminando meu doutorado, e isso me abalou demais, demais. O descaso, a chacota dos governantes.

Além disso, minha amiga Natália Couto Azevedo é uma cientista incrível, veterinária especializada em primatas neotropicais, e meu marido tem pesquisado a representação animal na literatura, e com isso tenho acesso a discussões maravilhosas sobre Antropoceno [uma época geológica marcada pela influência humana], ambiente, inteligência animal. Então esse conjunto de elementos foi direcionando minhas leituras e minha abordagem no livro. Achei que seria muito atual, por tudo o que estávamos passando, e ao mesmo tempo muito diferente em termos de criação da forma da magia num universo de fantasia.

O Frans de Waal foi um golpe de sorte: a editora Zahar lançou um livro dele quando eu estava revisando o meu, e pedi para a editora me enviar um exemplar. Devorei cada página e fui ajustando as discussões sobre o tema na minha narrativa com base nas pesquisas dele. Foi muito enriquecedor.

Dentro da lógica do seu mundo ficcional, o que me parece é que seu texto deixa as coisas bem no fio da navalha entre ciência e "magia", o que quer que isso seja, sem optar necessariamente por nenhum dos dois lados como explicação. Como vê o equilíbrio entre as duas coisas nas narrativas de quem escreve fantasia (e mesmo ficção científica, que também faz parte da sua produção)?

Ando com um pouco de birra com essas grandes oposições literárias: magia e ciência, natureza e cultura. Isso direciona muito o nosso pensamento cotidiano, faz parecer que existe um confronto, que é matar ou morrer, como se nós, humanos, não fizéssemos parte de um grande ecossistema. A gente se vê separado do mundo.

Nas literaturas insólitas, principalmente na ficção científica e na fantasia, é muito comum construir narrativas sobre o ser humano contra a natureza, o que tende a se exacerbar quando há alguma forma de magia envolvida. Afinal, o sobrenatural nessas formas de literatura possibilita explorar, até as últimas consequências, coisas que observamos no nosso próprio mundo, com algum distanciamento, porque magia não existe da forma como coloquei no livro.

Ao mesmo tempo, por muito tempo a literatura fantástica foi vista apenas como escapista. Embora eu não negue o valor do escapismo (todo mundo tem o direito de querer fugir do mundo de vez em quando), acho uma visão muito simplista. A literatura fantástica tem muito potencial de ressaltar assuntos que nos são muito próximos, talvez próximos demais e, por isso, doloridos. Aí quis colocar a ciência, não como oposta, mas complementar. Há coisas que sabemos explicar. Há outras que não, ao menos, não ainda. Para cientistas, o resultado importa, mas a busca é a maior parte da vida de pesquisadores.

E algumas respostas a gente não vai encontrar. Antigamente, a magia entrava para suprir essa necessidade de explicações. Mas, na contemporaneidade, temos visto a ciência ser tratada com uma crescente desconfiança, discursos que procuram desacreditar cientistas para ajudar as pessoas nas esferas de poder a explorar outros humanos, os animais, o planeta, de um modo destrutivo para o qual não haverá volta.

Construiu-se toda uma atmosfera anticiência que alimentou uma cisão, na qual algumas pessoas preferem acreditar em correntes sem fonte em aplicativos de mensagem do que numa pessoa que estuda um tema há vinte anos. Um dos fatores que permite isso é a ideia de ciência como algo inacessível. Não precisa ser. E eu acho que a literatura tem poder de mudar essa visão.

Eu fiz isso tanto na minha ficção científica, "Senciente Nível 5", quanto em "Árvore Inexplicável". Nos dois livros, mostro lados negativos da ciência, aos quais estamos habituados através de várias narrativas espalhadas no audiovisual, mas contrabalanceio essa leitura com os aspectos positivos da ciência, que são inúmeros, significativos e merecem mais visibilidade. Na maioria das vezes, quando a ciência é vilã, isso vem por pressão de gente poderosa que não escuta os cientistas. Achei que seria uma combinação interessante com nosso cenário atual e com a forma de magia que escolhi.

------

Não darei mais "spoilers" do livro por aqui, mas só queria acrescentar que o clímax do romance é uma das representações mais poéticas e poderosas que já li na vida sobre o que significa a existência de um ecossistema, forjado nas conexões profundas entre as mais diferentes formas de vida. Recomendo a leitura.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.