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Luiza Pastor
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Dois brasileiros que encararam o desafio de rocha de El Capitan

Monólito de 900 metros do Parque Nacional Yosemite, nos EUA, é uma das escaladas mais difíceis da modalidade

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Se um número cada vez maior de brasileiros que até há pouco só haviam visto gelo em cubinhos na caipirinha faz de um tudo para exibir-se nas redes sociais escalando altos picos nevados, sonhando com o Everest, um punhado de atletas se esforça há décadas para superar assustadoras paredes de rocha. Pode-se dizer que, para eles, uma formação como o impressionante El Capitan, no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA) é quase um Everest da modalidade.

Com seus 910 metros de altura, o paredão El Cap, como é chamado por seus íntimos, oferece uma das escaladas mais difíceis e técnicas do mundo. O nome foi dado pelos primeiros exploradores que chegaram ao vale, em 1851, e até 1958, quando a equipe do norte-americano Warren Harding chegou a seu cume, sua conquista era considerada impossível pela agressiva verticalidade. Atualmente, com o aprimoramento de técnicas e equipamentos, o grande monólito de granito recebe centenas de escaladores todos os anos, e já tem uma grande variedade de rotas para sua subida. A procura é tanta que o parque exige a solicitação antecipada de uma permissão especial —gratuita e sem número máximo de inscrições— para quem pretende escalá-lo. Um jeito de tentar impedir a bagunça e preservar o local, dizem seus gestores.

El Capitan, parede de granito com 910 metros de altura no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA)
El Capitan, parede de granito com 910 metros de altura no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA) - Arquivo pessoal/Eliseu Frechou

Vale explicar que, quando disse que El Capitan é "quase um Everest", quis dizer que, apesar de sua fama, não se trata da maior parede de granito do planeta. Esse título é da Grande Torre Trango, no Paquistão, cujas escarpas são consideradas as mais difíceis de percorrer até o cume, que está a 6.286 metros de altitude, com uma proeminência (a distância do colo da montanha até seu pico) de 800 metros. Mas o fato de o El Cap (cuja proeminência, a propósito, é de 438 metros, com uma altitude de 2.308 metros acima do nível do mar) estar tão mais perto do universo ocidental que a Trango gerou toda uma mística em torno da gigante norte-americana. Isto posto, sigamos.

Entre os brasileiros que mais e melhor conhecem os desafios do El Capitan estão os atletas e guias profissionais Eliseu Frechou e Gisely Ferraz, que contam um pouco de suas experiências.

Fotógrafo, documentarista, e dono de uma cervejaria em São Bento do Sapucaí (SP), Frechou, 55, começou a escalar em 1983, como muitos brasileiros nas vias do Pico do Jaraguá, em São Paulo. Em 1989, se mudou para São Bento do Sapucaí e fundou a primeira escola de escalada do Brasil, que até hoje oferece cursos regulares nas muitas modalidades do esporte.

Eliseu Frechou escala a via Zenyatta-Mondatta do monte El Capitan, no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA)
Eliseu Frechou escala a via Zenyatta-Mondatta do monte El Capitan, no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA) - Arquivo pessoal/Eliseu Frechou

"Quando fui para São Bento do Sapucaí, o que me pegava mesmo era escalar paredes, quanto maiores, melhor", lembra ele. Era natural, então, que mirasse o El Cap, ali ao lado do Half Dome, que também pretendia subir, e para cuja escalada batalhou um ano atrás de patrocínio.

"Eu queria muito ver como era escalar uma montanha tão impressionante que a gente só via aqui no Brasil em revista, era algo muito distante da nossa realidade", conta. "El Cap era visto no mundo todo como símbolo de dificuldade extrema e essa busca pelo desafio foi o que me impulsionou", acrescenta.

Frechou acabou escalando o El Cap duas vezes. A primeira, ao lado de Antonio Carlos Meyer, pela via Zenyatta-Mombata, em 1994, que na época era considerada a mais técnica do mundo, de grau A5 de dificuldade [o nível mais técnico e perigoso numa escalada]. Eles levaram nove dias para chegar ao cume, dos quais três pendurados da rocha e imobilizados a 400 metros de altura, esperando uma forte tempestade imprevista passar e tendo que racionar água e alimentos.

Quatro anos depois, voltou a Yosemite com Márcio Bruno, para enfrentar a via mais mortal do paredão, a Plastic Surgery Disaster (em tradução livre, Desastre de Cirurgia Plástica, um nominho bem sugestivo para espantar incautos). "Eu queria encerrar minha história naquela montanha, então, o negócio era pegar a via mais difícil, porque se eu quero ensinar, tenho que saber", conclui ele.

Os escaladores Marcio Bruno e Eliseu Frechou
Os escaladores Marcio Bruno e Eliseu Frechou - Arquivo pessoal

Se tem uma coisa de que Frechou não gosta é de que perguntem se não gostaria de escalar o Everest. "Tem um monte de outras coisas mais difíceis, muito mais legais, porque as ascensões brasileiras nessa montanha sempre são acompanhadas de muita estrutura, mas a escalada no gelo não tem nada a ver conosco, que nascemos num país tropical, essa obsessão é algo que herdamos dos europeus, que incutiram na cabeça do resto do mundo que o verdadeiro alpinismo é no gelo, quando é apenas uma das facetas da escalada", reclama.

E qual é a sensação de conquistar o cume do El Cap? "É sofrido, uma tensão constante, você tem que ter muita confiança no que sabe fazer e procurar curtir, porque ninguém está lá só para passar medo", explica Frechou.

Aos 40, resolvi viver meu sonho

Atleta profissional, guia de escalada e instrutora de escalada em fendas e hoje dando aulas no estado de Utah (EUA) Gisely Ferraz, 46, subiu suas primeiras paredes na Serra do Mar, no estado de São Paulo. Vendo as revistas internacionais sobre o esporte, sonhava com El Capitan, que via como o grande desafio da modalidade. "Eu o via como um marco, o lugar com que todo mundo sonhava, e eu queria um dia chegar lá", conta ela, que manteria seu sonho vivo por mais de 15 anos."

Gisely Ferraz descansa em escalada na parede da montanha El Capitan, no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA)
Gisely Ferraz descansa em pausa na escalada da parede de El Capitan, no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA). Pela verticalidade, os escaladores dormem em 'camas' suspensas de ganchos na rocha - Arquivo pessoal/Gisely Ferraz

"Quando cheguei lá e vi El Capitan, na minha cabeça eu disse que teria que escalar aquela montanha", lembra. "Aquilo mudou totalmente a direção de minha escalada, deixei de ser só uma escaladora esportiva, de procurar paredes de uma cordada, e fui atrás dos estilos e técnicas de que precisaria para aquela dificuldade", explica.

Depois de subir várias vezes por vias diferentes, Ferraz agora treina para fazer a escalada livre, ou seja, usando o próprio corpo, com pés, mãos e as pontas dos dedos, para se impulsionar buscando pontas, falhas ou fendas naturais da rocha, "tentando não cair". Entre seus treinos para essa tarefa, ela subiu a montanha vizinha Half Dome, também um ícone do Yosemite, que completou em 16 horas, desenvolvendo a habilidade de ganhar velocidade para as rotas. "Subir de forma muito lenta pode fazer com que se exponha a uma mudança de tempo violenta e repentina, você pode acabar no lugar errado no momento errado", diz.

Para cumprir suas metas, Gisely conta não só com o preparo físico, mas também com o psicológico. "Você tem que estar disposta a encarar os elementos, se preparar expondo-se a eles para que, quando estiver na montanha, conseguir tomar decisões importantes", define.

E qual teria sido seu melhor momento no El Cap? "Foi ver que é possível", resume. "A gente é criada com muitas limitações, e quando vira a chavinha e vê que, sim, é possível, basta acreditar, é um momento de muita glória".

Gisely Ferraz escala o El Capitan, no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA)
Gisely Ferraz escala o El Capitan, no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia (EUA) - Arquivo pessoal/Gisely Ferraz

"Muitas vezes as pessoas tentam te convencer de que você não pode, a família tenta te proteger por medo, mas esse é um medo deles", acrescenta Ferraz. Ela garante que, aos 46, faz escaladas "muito mais perigosas do que quando tinha 20 anos de idade, porque hoje acredito no meu potencial". Isso, apesar dos perrengues, como se pegar tomando o que achava ser uma chuva inesperada numa noite estrelada, pendurada para dormir numa parede do El Cap, para descobrir no dia seguinte que, na verdade, aquilo havia sido urina levada pelo vento, vinda de outro escalador que acampava um pouco acima. Sim, essas coisas acontecem quando o banheiro mais próximo ficou muitos metros abaixo das necessidades básicas e você está suspensa em uma base de poucos centímetros presa à rocha.

"Eu sou mãe, tenho um filho de 29 anos, e cresci achando que nunca ia conseguir fazer essas coisas, que seria muito difícil para mim fisicamente e financeiramente", pondera Ferraz. "Quando fiz 40 anos, resolvi que eu ia viver meu sonho, e é o que estou fazendo agora. Não só vivendo meu sonho, mas deixando um legado para a nova geração de que não é por você ser mulher que precisa ir sempre atrás, dá para fazer tudo de igual para igual, além de trazer um conhecimento diferente, acrescentar ao time", diz a vencedora do troféu Mosquetão de Ouro de 2023, na categoria Escalada.

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