Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira
Descrição de chapéu transporte público

Assumir sua própria independência não deveria ser arriscado

Queda de mulher cega no Metrô acontece depois de redução no atendimento a pessoas com deficiência

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São Paulo

A queda de Magda Paiva, uma mulher cega, assessora parlamentar, nos trilhos do metrô de São Paulo na última semana foi o principal assunto entre pessoas com deficiência visual.

Um consenso que parece haver entre quem usa o transporte público paulistano é que o serviço piorou muito desde a pandemia. Não por má vontade ou falta de preparo dos funcionários, mas pela escassez deles.

Quando uma pessoa com deficiência visual chega ao metrô, um funcionário a recebe e pergunta qual sua estação de destino.
A seguir, caminha junto com o passageiro até a segunda porta do primeiro vagão, onde é feito o embarque de quem precisa desse auxílio.

Após embarcar o passageiro, o funcionário liga para uma central avisando o número do trem em que a pessoa cega está.

Na chegada, outro profissional espera o passageiro e o conduz até a saída da estação desejada ou ajuda a fazer a baldeação para outra linha de metrô ou trem.

Quando a viagem é de apenas uma ou duas estações, em geral, a ligação é feita antes do embarque, para dar tempo de preparar a recepção do passageiro no destino.

É um serviço que há muitos anos funciona muito bem e permite que milhares de pessoas trabalhem, estudem ou aproveitem a sexta-feira no bar com os amigos.

O problema é que a falta de pessoal tem acabado com a eficiência do serviço e, como consequência, com a segurança dos passageiros com deficiência.

Os funcionários que restam não escondem seu descontentamento com a sobrecarga de trabalho e a impossibilidade de dar um bom atendimento. Afirmam que o problema resulta da falta de contratação de jovens aprendizes para dividir o serviço e insistem que devemos fazer reclamações na ouvidoria da empresa.

Um exemplo. Na última terça-feira cheguei à estação Marechal Deodoro por volta das 12h30 e havia apenas uma funcionária próxima a catraca da estação. Seu colega estava levando um cego. Esperei dez minutos até que ele voltasse, tempo suficiente para que chegasse mais uma passageira com deficiência visual, ampliando a fila.

Como a profissional me explicou a situação e garantiu que eu seria atendido assim que possível, esperei e seguimos todo o protocolo. Logo que desci na Sé, porém, não havia ninguém esperando. Nesse caso, não tinha como saber se a ligação foi mesmo feita com sucesso, se alguém estava vindo me buscar ou se ficaria esperando por muito tempo.

Da mesma forma que fez Magda,e que fazem muitos cegos todos os dias, preferi seguir meu caminho sozinho. Enquanto andava sobre o piso-tátil, uma passageira ofereceu companhia.

Eu e Magda assumimos o risco. Acho que fazemos isso por instinto, depois de entender que, se formos esperar que nos ofereçam segurança, não vamos poder mais sair de casa nem atravessar nenhuma rua. Basta notar que a presença de semáforos sonoros é pífia, há orelhões e obstáculos no alto que escapam das nossas bengalas espalhados pela cidade e poucos pisos que nos ajudam a achar a direção. E pessoas com deficiência também têm horário para cumprir, ficam ansiosas ou impacientes quando não sabem o que está acontecendo ou um serviço não funciona direito.

Vale ressaltar que o acidente de Magda aconteceu no espaço que, há até pouco tempo, era dos mais seguros para nós.

Quando ouvi ela dar seu depoimento, falar sobre a certeza de que morreria quando o trem passava sobre ela e o milagre pelo qual passou, eu sentia que aquele desespero poderia ter sido vivido por mim ou por uma dezena de pessoas que amo e que se arriscam todos os dias e estão sujeitas a passar por algo parecido.

Pior. Quantas são as pessoas que têm sua liberdade e possibilidade de ir e vir aprisionada pela falta de acessibilidade. Que nunca poderão excerxer todos os seus talentos e possibilidades porque não tem como chegar inteiros onde deveriam?

Quantos pais e mães de pessoas com deficiência sentiram que não poderão nunca deixar que seus filhos passem pelo que Magda passou e reagirão com nova dose de superproteção? Quantos que perderam a visão recentemente poderão ter seu processo de reabilitação e suas aulas de orientação e mobilidade adiadas depois que o perigo ficou escancarado?

Para mim, e acredito que para Magda também, levantar e seguir em frente é a única opção. Aceito que viver na selva de nossas cidades é assim e tomara que sigamos apenas com imensos sustos e leves escoriações. Mas creio que ter uma vida independente e ir para onde quiser não deveria mais ser tão perigoso.

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