Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Cartilhas sobre pessoas com deficiência são sintoma e remédio de nossa ignorância

Insegurança ainda é comum no contato com quem tem condição física ou sensorial diferente

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São Paulo

"Eu ainda não sei como me comportar com alguém que tem deficiência visual", me disse o motorista de aplicativo, que me esperava do lado de fora do carro, já com a porta aberta e estacionado da melhor maneira possível para que eu entrasse com segurança no automóvel na última quinta-feira (29).

A intenção de sua fala estava absolutamente correta: admitir a ignorância para aprender como acertar e realizar um atendimento seguro e respeitoso. A vida seria mais fácil se mais pessoas tivessem a mesma humildade para a´aprender e fazer o melhor possível.

Por outro lado, me sinto frustrado ao notar que parece que pessoas cegas e com baixa visão precisam de um manual de instrução, que a maioria jamais leu. Que na maioria das vezes em que eu sair de casa, quem interagir comigo pode sentir insegurança e até se afastar por não entender como se relacionar com uma pessoa com deficiência visual.

Você provavelmente acharia esquisito se houvesse um manual para ensinar os outros como conviver com alguém parecido com você. Talvez até soasse ofensivo se aparecesse um livro de etiqueta para se relacionar com jornalistas, professores, advogados, cozinheiros, executivos, pessoas com determinada cor de pele, orientação sexual ou religião.

Mas, para pessoas com deficiência, basta fazer uma pesquisa na internet para descobrir que existem e seguem sendo escritas dezenas de cartilhas sobre como conversar, o que fazer ou não fazer, se pode chamar de determinado jeito ou não.

Por que ainda precisamos de vídeos no YouTube, no Instagram e no Tik Tok dizendo como cegos se alimentam, cuidam de casa e se reproduzem, como se viéssemos de alguma floresta remota ou de uma galáxia muito distante?

Fico pensativo quando vejo um influenciador acumular seguidores na internet dizendo o óbvio, explicando que pessoas com deficiência podem e merecem sair às ruas, se divertir, namorar, ter filhos e fazer o que quiserem da vida. Estão corretíssimos. Mas por que isso ainda é novidade?

As cartilhas e manuais sobre pessoas com deficiência que proliferam em multiplataformas são ao mesmo tempo remédio e sintoma de nossa ignorância. É de se comemorar que agora o assunto esteja começando a entrar na pauta e que há pessoas com voz para dizer que estamos aqui e merecemos respeito, mas com a consciência de como o debate ainda é raso e o que deveria ser sabido por todos não deixou de ser novidade e ´precisa ser repetido todos os dias. Não seja capacitista, deixe a pessoa cega segurar no seu braço, fale com ela em vez de quem a acompanha, avise quando cehgar e quando for embora...

Eu ter uma deficiência é ainda algo tão extraordinário para muitos que a questão "Como você ficou cego?" é a pergunta inicial mais provável para a primeira conversa com alguém, logo após o "Oi, tudo bem?".. A seguir virão questões para certificar que realmente não tem cura para mim e como eu faço para me virar nessa condição.

Quando meus olhos se tornam alvo da curiosidade alheia, em geral respondo com toda a paciência do mundo, com o objetivo de explicar que alguém com deficiência pode fazer muito e ter uma vida plena.

Por muito tempo acheava divertido. Falar sobre minha deficiência, além de uma oportunidade de informar, era uma forma de iniciar conversas com estranhos, um tema bom para quebrar o gelo. Mas que de vez em quando a conversa repetida cansa.

Mesmo assim, vamos continuar a escrever nossos guias e fazer com que sejam muito mais distribuídos. Seguimos repetindo o óbvio mais um milhão de vezes até que deixemos de ser seres estranhos e se descubra que estar com a gente é muito mais fácil do que se pensa.

Agora, se você quer aprender como estar com uma pessoa com deficiência de verdade, o melhor é conviver com uma. Garanto que, depois de alguns meses, você cometerá uma série de gafes. Mas não será por não saber o que precisa fazer. Ao contrário. Voc~e sentirá que é tão natural que irá esquecer. Lembre-se disso e dê boas gargalhadas quando. sem querer, mostrar uma foto para que seu melhor amigo cego a veja.

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