Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Um olhar de amor e indignação

Em menos de um ano, ela foi do desconhecimento ao ativismo em defesa das pessoas com deficiência

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São Paulo

"É difícil ter deficiência visual?"

Quando recebi esta pergunta, era ainda nossa primeira semana de troca de mensagens, na qual tentávamos descobrir as primeiras afinidades. Até aquele momento, sabíamos que gostávamos de MPB e cada um tinha seu canal no YouTube, ela sobre bioquímica, eu sobre partituras em braille. Parece pouco, mas foi suficiente para tentar continuar a conversa iniciada no aplicativo de namoro.

Eu acreditava que ela já soubesse da minha deficiência visual, pois coloquei uma foto de perfil no app na qual apareço segurando minha bengala. Errei. Com jeito, ela perguntou se podia fazer uma pergunta. Queria saber se eu tinha alguma lesão na perna. Expliquei que não, eu podia correr muito bem, desde que alguém fosse comigo para indicar o caminho para que eu não bata nem tropece em nada, afinal, enxergo bem pouco.

Quando ela indagou sobre os desafios da minha condição, imaginei que entraríamos por um caminho que não levaria a um namoro. Ela sentiria dó de mim, seríamos no máximo bons amigos, mas continuei ali. Ao menos era uma oportunidade de dar informações anti-capacitistas de utilidade pública. Expliquei meu caso, que havia nascido com uma acuidade visual razoável e, conforme fui perdendo a visão, encontrei os recursos necessários para que eu tivesse uma vida bastante independente e bem resolvida. Falei que era tudo muito tranquilo, bastava que ela observasse o que eu fazia diariamente.

Ela admitiu que era um universo novo, que nunca tivera contato com alguém com deficiência visual, mas estava disposta a tentar entender. Mostrei, ainda remotamente, como funciona meu celular, falei sobre como é andar na rua, subir escadas, fazer a barba, usar o computador e trabalhar. Também respondi a perguntas inéditas. Ela quis saber ainda se, caso eu tivesse filhos, eles teriam a mesma condição que eu. Não pesquisei isso a fundo, mas admiti que a probabilidade deve ser alta.

Marcamos o primeiro encontro, três meses depois de nossa primeira conversa, após muitas horas de telefone e dezenas de declarações na madrugada.

Na véspera, ela temia que, ao sentir seu rosto, eu encontrasse ali alguém diferente do que eu imaginava, quando só tinha acesso a sua voz. Eu, por outro lado, temia que a falta de visão fosse uma barreira para nós.

Foram mais de três horas de viagem até chegar a cidade dela. Nos encontramos na porta do ônibus para um primeiro abraço ainda sem jeito. Decidimos caminhar de mãos dadas, desrespeitando o protocolo que prevê que a pessoa a ser conduzida segura no cotovelo ou no ombro de quem a leva.

Eu acreditava que estava tudo bem na minha vida, que com um pouco de paciência, insistência e jogo de cintura, dava para fazer a vida de uma pessoa com deficiência visual ser fácil. Ela, que não sabia de nada, logo entendeu detalhes que eu já deixara de reparar. Via a calçada e via todos os degraus e obstáculos, notava como havia perigo de eu tropeçar a qualquer momento. Eu dizia que jamais vira olhares de preconceito, enquanto ela me contava dos olhares de espanto de muitos que recebíamos de todos os lados quando andávamos juntos e que com frequência as pessoas se encabulavam ao me ver chegar por não saber como agir.

Mais do que isso, ela aprendia a cada dia e se indignava com a falta de conhecimento de todos, em geral, e dela em particular. Descobriu o que era piso tátil e que, apesar da ferramenta ser incrível, na maioria das vezes os projetos são feitos com óbvio descaso e os caminhos para serem sentidos com a bengala não levam para lugar algum.

Descobriu que havia braille na caixinha de remédio e no elevador. Por outro lado, só encontramos cardápio em braille em uma pizzaria até hoje. Passou a questionar o motivo de não haver aulas de braille nas escolas, nos cursos de formação de professores.

Mais ainda. Ela se chateou por não encontrar presentes com braille para mim e começou a aprender a escrever em braille para quem sabe criar produtos que atendam a uma parcela da população mal assistida pelo mercado.

Ficou inconformada com a dificuldade de encontrar atividades culturais com audiodescrição e também achou que a qualidade de parte deles anda muito baixa e concluiu que não tenho como acessar muito do conteúdo de filmes e peças de teatro.

Ela me fez perceber direitos que eu tenho e não havia imaginado, como o de saber com o tato se a embalagem que pego na geladeira é de suco ou de leite, e de qual fruta e qualidade.

De quem nada entendia recebi compreensão rara ao longo de nossa convivência. Ela me pôs a refletir sobre os desafios que enfrento a cada dia. Entendeu como é trabalhar escutando o dia inteiro um programa que lê de forma artificial textos para mim no computador e por vezes enfrentando barreiras de acessibilidade em sites e softwares e me fez aprender a lidar com mais calma com as dificuldades e o estresse que isso gera.

A partir do seu olhar, aprendi a ver com mais clareza muitas das injustiças que enfrento e que, por já estar conformado e adaptado, não dava mais atenção e entendi que posso fazer minha vida mais fácil e autônoma.

Começou a pensar em nossa futura casa. Decidiu que copos e pratos de vidro não ficarão no alto,
que as roupas ficarão organizadas em uma escala de cor que me permita escolher combinações mais facilmente.

Neste quase um ano que estamos juntos, minha percepção mudou e entendi que, sim, a vida de quem tem deficiência visual é bastante complicada, principalmente pela falta de adequação da nossa sociedade para quem é diferente. Pode até ser que eu esteja adaptado para enfrentar tudo isso razoavelmente bem, mas ainda cabe a mim tentar melhorar um pouquinho a situação, junto a minha aliada e companheira. Se não por mim, certamente pelos filhos que virão.

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