Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Nós, cegos, também queremos invadir sua praia

Viagens de pessoas com deficiência visual podem precisar de mais planejamento e adaptações, mas são possíveis

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São Paulo

Compartilhávamos o mesmo caminho de metrô, meio de transporte favorito de quem tem deficiência visual. Ela me contava sobre sua mudança de setor na empresa e sobre seu período de adaptação, debatíamos como por vezes é desafiador aprender caminhos novos, que leva até um tempo até se descobrir como pegar café sozinha e decorar o caminho até o banheiro ou a portaria sem precisar pedir ajuda de ninguém. Até que mudamos de assunto e a conversa foi do nosso tatear vacilante para conhecer os meandros de nosso escritório para a nossa audácia de explorar o mundo. Isso quando ela me contou que passou as últimas férias na praia com seu namorado, que também não enxerga.

Fiquei admirado e quis logo saber os detalhes para entender como isso era possível.

Não é questão de capacitismo, uma visão distorcida sobre o que pessoas com deficiência podem ou não fazer. Sei bem que há desafios práticos para quem não vê e quer ir a praia. Especialmente quando se dá um mergulho no mar. A gente até sabe por onde entrou, mas a correnteza vai levando devagarzinho e quando damos conta aquele prédio ou quiosque que era nosso ponto de referência já ficou longe.

No passado, eu ficava imaginando alguma alternativa. Poderia usar um aplicativo que, por meio do GPS, permitisse marcar um ponto no espaço para o qual eu gostaria de voltar, talvez uma cadeira com um guarda-sol, por exemplo.

Também precisaria de uma bolsinha muito bem fechada, na qual guardaria meu celular de modo a poder mergulhar com o aparelho junto a mim sem estragá-lo. Ao final do banho de mar, acionaria o app e ele me ajudaria a chegar até o ponto de partida com segurança.

Ficou só na imaginação. A precisão da navegação por celular ainda não chegou a esse nível milimétrico que me permitisse encontrar um chinelo perdido na areia sem ver. Nem sei se uma bolsa ou sacola hermeticamente fechada como a necessária existe e não quis colocar meu aparelho á prova.

O mais perto desse mergulho solitário que arrisquei acontecia nas viagens que fazia com meu vô Joaquim. Ele, que tinha como sagrada a ida a praia com o neto a cada início de férias, só gostava de molhar o pé na água, guardava por um instante minha bengala e demais pertences enquanto eu ia alegremente ao fundo. Quando percebia que eu já começava a me distanciar, meu vô encontrava um banhista e pedia gentilmente que fosse me buscar. Durava cinco minutos e era um dos pontos altos daqueles dias tranquilos na Praia Grande, litoral de São Paulo.

Foi mais ou menos o que fizeram com minha amiga, sem precisar cansar o avô de ninguém. Ela se planejou direitinho, ligou para um resort em porto seguro, na Bahia, falou sobre sua deficiência e foi assegurada que haveria assistência. Durante a estadia, quando entravam no mar, a equipe da hospedagem ficava de olho neles, avisava caso se distanciassem muito e ajudavam na hora de voltar. O sacrifício de privacidade em prol da liberdade de ir aonde bem entendiam certamente valeu a pena.

Não é que seja fácil, mas é plenamente possível que pessoas com deficiência visual peguem a estrada ou um avião para ir a praticamente qualquer lugar. Hoje os aeroportos e companhias aéreas oferecem um serviço razoável para encaminhar os passageiros com alguma deficiência até o portão de embarque. Também costuma funcionar adequadamente em rodoviárias de grandes cidades. Nos municípios menores, talvez o procedimento para nos receber quem tem deficiência seja menos estruturado, mas sempre é possível obter a informação necessária conversando com outros passageiros e funcionários.
Também nunca estive em um hotel em que não conseguisse ligar para a recepção e ter ajuda de um funcionário que viesse me encontra na porta do quarto e fosse comigo até o café da manhã ou ao hall. Por outro lado, apartamentos de aluguel por temporada por vezes são totalmente inacessíveis para cegos logo na entrada, pois exigem que se digite senhas numéricas em uma tela touch screen que não oferece nenhum retorno sonoro para permitir seu uso independente da visão.

Provavelmente o turista cego pode precisar de um pouco mais de planejamento e gasto para que a viagem valha à pena. Conforme minha visão foi diminuindo, por exemplo, descobri que ter um guia ao meu lado no passeio era muito melhor do que tentar achar algum outro turista no museu amigável disposto a contar para mim o que eu não podia ver. Muito disso porque, pela minha experiência, a maior parte das audiodescrições em pontos turísticos, geralmente feitas a partir de aparelhos de celular, até trazem informações interessantes, mas não são suficiente para uma visita 100% autônoma.

Ainda há questões que não sei como resolver. Como eu poderia ir para um parque de diversões sem levar junto um acompanhante para me guiar? Como faria caso estivesse em um país que não fala nenhuma língua na qual eu consiga me virar? Sem ter meios de me comunicar por gestos, penso que seria bem complicado até pedir um prato de comida fora do hotel. Mas a experiência recente de minha amiga me faz pensar que mesmo esses mares nunca explorados também podem dar pé.

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