Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Aprendendo a ouvir sombras

Preocupação pela perda contínua da visão foi substituída pelo estímulo de perceber o mundo por outros sentidos

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São Paulo

Era noite. Minha namorada me ensinava um caminho familiar para ela e novo para mim. Ia à minha frente, deslizando sua bengala sobre a calçada. Indicava degraus, rampas, falhas no terreno que poderiam me ajudar a mapear todo o trajeto.

Também encomendou que eu prestasse atenção na sombra do muro ao nosso lado esquerdo para me preparar para a travessia na hora em que ela diminuísse.

Novamente, era noite, ela cega e eu com pouquíssima visão. Sem ver sombra nenhuma, achei graça e disse ser impossível. Mas ela falava era dos sons, daquilo que resultava do deslizar e bater das bengalas no chão. Não sei dizer se ficavam mais claros ou escuros. Talvez mais encorpados. Mas a sombra estava ali. Tudo ganhava um contorno diferente quando havia uma parede por perto, por conta da reverberação que ela provoca.

São detalhes sutis, mas perceptíveis para qualquer pessoa, não há nenhum poder especial que se ganha como compensação por não enxergar. É uma habilidade que se desenvolve com paciência, atenção e treino. O nome técnico é ecolocalização. Em casos muito avançados e raros, há quem ande a pé e de bicicleta usando estalos de língua e prestando atenção em sua sonoridade para encontrar os obstáculos.

A imagem mostra uma vista de baixo para cima de uma floresta densa, com árvores altas e uma atmosfera nebulosa. A luz é suave e a neblina cobre parte das copas das árvores. As folhas e galhos estão visíveis, enquanto o céu é quase invisível devido à densidade da vegetação.
'Percebo árvores que escondem o céu e das quais posso me aproximar na metade do caminho'

Não é o que eu faço. Mesmo que não seja possível reconhecer um amigo, ver uma foto ou admirar uma flor, meus olhos estão me transmitindo luzes, sombras e pequenos recortes de imagens o tempo todo. Esses fragmentos confusos ainda me orientação. Quando saio da minha sala de trabalho e vou em direção ao restaurante, consigo ver a luz do sol refletida no piso tátil. Percebo árvores que escondem o céu e das quais posso me aproximar na metade do caminho e o escuro da parede do lado da qual devo andar até chegar ao restaurante.

A bengala, ou seja, a extensão do meu tato, me protege de obstáculos com os quais posso trombar, me ajuda com degraus, mas não desenvolvi ainda todo o potencial de meus outros sentidos.

A troca entre quais serão as percepções preponderantes para mim tem sido gradual e contínua. Pensando nisso, fechei os olhos e me imaginei ouvindo as sombras que ela me ensinou a escutar e como será não enxergar mais nada daqui alguns anos. Atravessei a porta do meu quarto lentamente e senti a mudança no modo como chegava até mim o som da televisão ligada na sala.

Com cautela, virei à esquerda e entrei no cômodo com mais segurança do que o habitual. Dei meia-volta e observei o barulho do micro-ondas em funcionamento mudando conforme passava ao lado da cozinha e, depois, entrava nela. Procurei as mudanças de luzes, sombras, cores, contrastes e texturas que ouvia ao meu redor e notei o quanto podia perceber.

Não que eu vá sair de casa vendado a partir de amanhã, após o sucesso da experiência. Meu processo de abertura de ouvidos, para usar um termo do educador musical e compositor canadense Muurray Schafer, ainda está só no começo. E saber que ainda há tanto para desenvolver é muito mais do que um alívio para a perda iminente, é o estímulo para seguir em frente com curiosidade e entusiasmo renovados.

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