Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu

Quando o telefone toca na madrugada

O coração acelera, notícia boa não é. Durmo pronta para sair correndo

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Quando o telefone vibra no meio da madrugada, dou um salto na cama. Faz uns anos que me vejo assim. Não durmo com o celular desligado. Jamais. Estou sempre pronta para sair correndo. A bolsa fica ao lado da cabeceira, com tudo dentro.

Não sem motivos. Nessa semana, ele vibrou com minha mãe indo para o hospital. Ela teve um piripaque no coração. O médico não sabe dizer se foi um micro infarto, um quase infarto, ou um enrijecimento. Então eu tô chamando de piripaque mesmo. Fez o cateterismo (confesso que acho essa palavra bonita) e colocou dois stents. São molas bem pequenas que entram pelo pulso, seguem a correnteza de sangue e vão desabar na cachoeira do coração. Inflam e passam a morar ali.

É um mistério para mim, um sono profundo para minha mãe-sedada, um videogame para os médicos e deve ser uma aventura para essa tal mola.

Mamãe já está bem, dizendo por aí que o nome do que ela tem é ‘velhice’. No quarto do hospital, ela gosta de deixar a televisão no mudo. O olhar se distrai com as imagens e a cabeça fica livre para divagar sem ninguém achar estranho aquela senhora estar fitando o nada, por horas. Eu cresci com ela assim, encarando uma parede branca. Só entendi isso quando li Samuel Beckett (1906-1989) dizendo que sua criação começa nesta mesma parede branca. Ele medita, estaciona o olhar e sonha acordado. Ela também, mas prefere o teto ou a televisão no mudo. Cria seus textos, vê personagens tomando vida, ocupando o ar.

Minha mãe diz que o envelhecimento exige paciência (daí a palavra paciente, segundo ela) e aceitação. Não se trata da aceitação que significa jogar a toalha. "Aceitação é perceber que tem coisas que não dá para fazer mais, e não sofrer com isso. Eu não posso mais saltar do trampolim. E olha que eu fui campeã. A sabedoria está em distinguir qual aceitação devemos … aceitar".

Ela tira umas gargalhadas da equipe de enfermagem. Durante o ‘banho no leito’, a equipe passa um pano pelo corpo do paciente. É um tal de vira para um lado, para o outro, com três pessoas em volta, estendendo lençóis, molhando panos, levantando e abaixando braços e pernas, como se manipulassem um boneco com muito carinho. Quando viram minha mãe para o meu lado, ela está com um olhar meio assustado e diz: "muito sensual esse banho. Se um homem fizesse isso comigo, eu casava" .

Neste ano, acordei também com uma ligação na madrugada falando que meu pai tinha caído da própria altura. Ele é bem alto, mas não justificava os ossos quebrados da bacia. Colocou placas de aço. Eu vi as plaquinhas. Peguei nas mãos e desejei boa sorte. Parecem peças de lego. Estão lá dentro dele, fazendo-o andar novamente.

Essa ideia de se especializar em morte às vezes incomoda. Uma vez eu fui acompanhar uma cremação para escrever um artigo e vi as peças de metal no meio do pó. Aquilo me marcou demais. Fiquei com essa imagem na cabeça e um sentimento horrível de um dia ter essas peças todas, hoje parte integrante do corpo deles, entre meus dedos. Um horror. O coração aperta. Eu nunca estarei preparada para perdê-los.

Quando o telefone toca no meio da madrugada eu entro no modo alerta. Mas no quarto do hospital, quando eu escuto a máquina de oxigênio soprar bem forte, em uma partitura mecânica, me dá um sono irresistível. Parece que eu entro no limbo e vou encontrar a morte. Barganho mais umas duas décadas para meus amados pais. Que eles vivam até os cem. Eu quero continuar ouvindo o telefone tocar e, a cada estadia no hospital, levá-los de volta para casa, mãos dadas, sobrevivemos, e comemorar cada segundo de vida que temos, um ao lado do outro.

Um barco navega no universo, caminha para um portal
Crédito: Johannes Plenio, via Unspleash - Crédito: Johannes Plenio

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