Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu maternidade

Em paz com a minha morte

Nasceu minha filha - nasceu sua mãe

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Embora seja considerada uma pessoa sociável, tenho um dos mais graves problemas para os relacionamentos sociais aleatórios. Não consigo mentir, mesmo que para perguntas retóricas.

Eu estranho quando uma pessoa responde que está tudo bem quando eu e ela bem sabemos que não está. E, nos últimos anos, meu "tudo bem" é na melhor das hipóteses "do jeito que este país permite".

Desde que virei mãe, há exatamente nove meses, enfrento grandes dificuldades. Embora eu desvie dos ensinamentos maternos do mesmo jeito que tenho desviado da Covid, não há reclusão ou N95 que impeçam pitacos e conselhos infalíveis de chegarem.

Ora escuto que é-o-maior-amor-do-mundo, a-melhor-coisa-da-vida, ora escuto que sua-vida-acabou e nunca-mais-você-vai-dormir. Tudo bem, quem é que já não ouviu isso antes? O problema é que agora as mesmas frases sobre as quais nunca soube bem o que pensar se tornaram perguntas. E eu não sei direito como responder.

Sempre me incomodei com essa ideia de que ser mãe é "padecer no paraíso". Essa visão extremada de uma coisa muito ruim dentro de uma coisa muito maravilhosa me causa estranhamento. Eu acho que deveria estar tudo bem em me sentir muito cansada e achar que a melhor coisa do mundo em certo momento é dormir, mas parece que eu deveria me sentir a pessoa mais abençoada do universo a cada vez que minha filha sorri, mesmo que eu mal esteja conseguindo abrir os olhos. Sinto como se eu devesse me sentir culpada a cada segundo que não olhei para ela e concordei com "realmente, é o maior amor do mundo".

Pensando bem, acho que Deus, para quem acredita em Deus, criou a culpa tão grande que sentem as mães (a maioria? Todas?) para que elas tenham outro sentimento bem grande, bem forte mesmo, que ocupe todo o espaço disponível, no lugar do medo.

Quando minha filha tinha quatro meses, compus uma música para ela. E eu nem sabia do tamanho desse medo sem te proteger/Não o tempo todo, só cada vez que você respirar. A primeira e única vez em que Beatriz teve uma febre, meu corpo parecia que seria engolido por si mesmo até acabar. Eram só os dentes nascendo (os pediatras que me desculpem), mas isso não aliviou o meu medo, nem um pouquinho.

Na infância, meu pai sempre dizia que na ordem de prioridades dele, eu e minha irmã vínhamos depois da minha mãe. Não sei direito por que ele falava isso, acho que para que não ficássemos muito mimadas. A verdade é que sempre estivemos em primeiro lugar, para os dois.

De todo modo, eu achava isso bonito. Não o colocar alguém à frente de nós, mas o exaltar o amor da sua vida, a minha mãe. Ao longo do tempo, no entanto, comecei a ficar meio chateada. Todo mundo fazia questão de dizer que os filhos eram as pessoas mais importantes de suas vidas, comigo era diferente?

A infância acabou, a adolescência passou, o início da vida adulta chegou. Voltei a ver aquela mesma beleza na forma como meu pai elegia seus amores naqueles tempos.

Outros tempos. Nunca mais o ouvi falar isso, mas sempre que pensava na maternidade, mesmo quando a achava tão distante de mim, essa ordem inspirava meus pensamentos. E eu sempre refletia sobre a hierarquia dos amores.

Talvez seja por isso que não consigo me identificar com nenhum texto sobre a maternidade. Nem com aqueles que seguem sugerindo que a vida de uma mulher não pode ser completa sem um filho, menos ainda com aqueles que quase consideram que querer ser mãe na década de 2020 é obsoleto e fruto da imposição social. Ultimamente, a mitigação da primeira ideia vem com um certo protagonismo da mãe, como se sim, ter filho fosse essencial, porém não, você não fosse obrigada a nada em razão disso – gosto ainda menos dessa postura.

Já li e ouvi muitas vezes sobre a importância de a mulher que se torna mãe não se esquecer de si mesma, não se esquecer de quem era antes de ser mãe.

Em minha recém-inaugurada maternidade, acho um esforço em vão. A mudança operada pelo nascimento de um filho é tão profunda, que é como se o conjunto formado por cada uma das minhas células não fosse mais o mesmo. Como um Lego que usa as mesmas peças, mas é montado de um jeito completamente novo.

A pessoa que sou agora tem tudo que eu era antes, mas o meu eu anterior, aquele que não era mãe, morreu. Não vejo sentido em continuar procurando por ele. Tentar fazer isso é imaginar um mundo em que minha filha não existe, nunca existiu.

E eu estou em paz com isso.

Estar em paz, no entanto, não significa dizer que é fácil. Ser o primeiro amor da vida de alguém, responsável por proteger o filhote mais indefeso da face da Terra, pesa. Pesa muito.

Na minha música, que na verdade é dela, digo que No tempo que já não existe, são suas todas as horas. Essa é provavelmente a parte mais difícil da maternidade para mim. Não há mais as horas do relógio, os dias da semana, o mês. É o tempo de Beatriz. Minutos de Beatriz, horas e dias do ano de Beatriz.

Tempo que passa muito rápido e de repente passa muito devagar. Se você está sozinha cuidando de um bebê, você olha para o dia anterior e se pergunta o que foi que fez que não fez nada e ele já acabou, mas enquanto estava ali cansada naquele mesmo não-fez-nada-e-já-acabou, cada minuto durava muito.

Você não quer que o tempo passe, todo mundo diz aproveita, porque é muito rápido, você vai sentir falta e se arrepender de cada segundo que usou fazendo qualquer outra coisa que não ver esse ser humano que é seu filho crescer. Mas você também quer que o tempo passe, porque o sono é arrebatador, a exaustão é muito grande e é urgente saber que está tudo bem, engatinhou, andou, falou, consegue ler.

Ao menos é assim para mim.

Agora que já superamos os primeiros meses, posso escrever que minha filha dorme (muitas vezes) a noite inteira. Ou não, provavelmente não posso, porque cada uma das poucas vezes que respondemos em voz alta "sim, dorme", ela não dormiu.

Mas mesmo com esse bilhete premiado que é ter uma criança que dorme, existe sempre a ansiedade do colocar o filho no berço para o grande sono da noite. Você vai saindo devagarinho, muito devagarinho, com medo de pisar naquele pedaço do chão que faz um barulho – e pisa – e com medo de a maçaneta fazer um estalo – e faz. Depois você mantém o ouvido atrás da porta por alguns minutos e fica próxima o suficiente para que qualquer respiro mais profundo ligue o alerta e você possa tentar evitar o choro que vai aumentando até provocar o grande acordamento.

Às vezes você olha na câmera, quem tem câmera, e vê que os movimentos estão se tornando cada vez mais bruscos e mais e mais e não sabe o que fazer, uma ansiedade que vai subindo pela garganta até quase sufocar e praticamente fazer ficar aliviada quando finalmente vem o choro e você não precisa mais esperar para ver se o grande acordamento virá.

Para de olhar, tem que ter pensamento positivo, eu costumo dizer. Como aquela música do Cidade Negra, você vai entender a força de um pensamento, pra nunca mais esquecer. Outro dia cantarolava isso enquanto esperava e daí pulei para célula possui três partes em sua divisão, uma membrana com função de proteção, proteção, e para você chegar terá que atravessar a membrana nuclear, a membrana nuclear.

Não sei ao certo se era assim mesmo a música que eu aprendi quando me mudei de Petrópolis para Belo Horizonte no meio do ano letivo de 1997. Nos primeiros dias da aula de biologia, fui colocada em um grupo que já tinha criado a música para as aulas sobre célula e eu só decorei para cantar junto no dia das apresentações. Confesso que na época tive inveja de um outro grupo, vestido de bichinhos da Parmalat, mas a nossa música certamente é melhor e até hoje eu acredito que poderia acertar uma questão do Enem com ela. E o complexo de Golgi as prepara para serem eliminadas, pois lá não vão ficar.

Provavelmente dormi tentando lembrar o resto da música e naquele dia nosso bebê dormiu a noite inteira. A força do pensamento unida ao poder das células na mesma canção – não tinha como dar errado.

Você pode achar que esse pedaço não faz o menor sentido em um texto como este, por que alguém usaria os caracteres assim? Acho que é uma forma de mostrar que nós, mães, podemos ser tão parecidas quanto diferentes, às vezes muito diferentes. A maternidade é talvez o que de mais universal e individual existe no mundo. Estávamos unidas pela ansiedade de quem coloca um bebê para dormir, mas acho pouco provável que você tenha pensado no complexo de Golgi.

Talvez você estivesse pensando sobre o amor. O amor por um filho, aquele que não sei o tamanho, mas que acho que é do mesmo tamanho da paz que sinto, até com a minha morte. É enorme, infinito. Bonito, tanto quanto deve ser todo amor.

Quase tudo na minha vida pode mudar. Menos a realidade de que eu serei, para sempre, a mãe da Beatriz.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.