Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu
Mente

Homenagens em vida: uma onda de amor para AnaMi

Mobilização de amigos realiza os últimos desejos de Ana Michelle Soares

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Homenagens em vida: uma onda de amor para AnaMi

Por Tom Almeida e Camila Appel

Ana Michelle Soares, conhecida como AnaMi, é escritora, jornalista e ativista em cuidados paliativos. Ela foi diagnosticada com câncer de mama metastático em 2011, aos 28 anos. Nesses 12 anos que se passaram, usa sua voz e escrita para falar abertamente sobre finitude, com humor e poesia.

Quando recebeu o diagnóstico, passou a frequentar um grupo no Facebook chamado "Meninas de Peito" e lá fez vínculos profundos, como a amizade com Renata Lujan. A professora de alfabetização em escolas públicas tinha 38 anos e recebeu seu diagnóstico no dia em que foi buscar o vestido de noiva. Casou careca. Começaram, juntas, o Instagram @paliativas, em novembro de 2016. O objetivo estava claro na descrição: "Dizem que o câncer metastático não tem cura, 'só' tratamento paliativo. Então, o jeito é paliar e VIVER INTENSAMENTE os 70 anos que nos resta".

Na fase final da vida de Renata, em 2018, AnaMi se mobilizou para completar a bucketlist da amiga. A ideia de Bucketlist foi inspirada no filme "The Bucket List" ("Antes de Partir"), com Morgan Freeman e Jack Nicholson. É uma lista de desejos a serem realizados antes de morrer. Na lista de Renata, tinha:

# Ir pra Aparecida do Norte queimar um fígado (a vela só pra deixar claro)

# Ouvir "me desculpe" de uma amiga que me magoou profundamente

# Meu pai e Nilza se acertarem

# Extrema unção com o Padre Fábio de Melo que é bonito e bem humorado (pq Deus que me perdoe, mas padre mal humorado é pra desejar ir logo para o purgatório)

# Ir ou ver a AnaMi rindo disso tudo em Paris

AnaMi conseguiu levar o Padre Fábio de Melo até o hospital para conhecer a amiga. Renata morreu em agosto de 2018. No mesmo ano, AnaMi foi para Paris e publicou uma homenagem à parceira: "No auge de um cansaço de quimio, em março desse ano, falei que tinha hora que eu nem sabia de onde tirar forças e ela me consolou dizendo ter certeza que aquele sofrimento ia passar e eu iria "rir disso tudo". Brinquei que queria rir em Paris (...). Agradeço do fundo do coração a todos que riram junto comigo, de perto ou de longe, por eu estar aqui me divertindo, chorando, me emocionando, sentindo, gargalhando e acima de tudo, sendo grata por simplesmente estar viva". (foto)

AnaMi continuou a missão que tinha iniciado com a amiga, publicou dois livros, "Enquanto eu Respirar" e "Vida Inteira" ambos pela Sextante, está com um terceiro no prelo, gravou um Ted e foi entrevistada por Pedro Bial. Hoje, o instagram que começaram tem 168 mil seguidores.

Na última sexta-feira (05), AnaMi publicou em seu stories: "Os caminhos estão ficando cada vez mais estreitos e eu nunca prometi eternidade pra vocês... no momento, o câncer é o de menos no meu corpo. Talvez, eu morra em decorrência de infecções pulmonares. Não fiquem tristes, eu não estou. Passei os últimos anos falando e aprendendo sobre finitude. Ela não me coloca medo, talvez curiosidade. Descobrir o Grande Mistério deve ser interessante. E não esqueça, estarei sempre por aí, dançando com o vento!".

O texto, lúcido e acolhedor, gerou uma onda de homenagens em vida. Seus seguidores começaram a postar e escrever aquilo que fariam assim que ela se fosse. Não esperaram a notícia da morte. Melhor ainda se ela puder ler e sentir cada uma das declarações, em vida.

A médica paliativista Ana Claudia Arantes publicou uma foto ao lado de AnaMi "Toda vez que eu tiro foto com alguém que amo, eu olho para os olhos da pessoa que está do meu lado. E é assim, com esse meu sorriso de latifundiário, que eu te vejo sempre e para sempre. Gente boa, falar sobre a beleza do encontro agora é muito mais importante do que depois. Afinal a gente não sabe se no céu tem Wi-Fi, né?? ".

O enfermeiro Daniel Espirito Santo em sua página @enfermagem.paliativa publicou uma foto ao lado de AnaMi e seu livro nas mãos: "Por pouco eu não fico sem publicar essa foto. Por pura timidez minha e outras bobagens, mas me lembrei especificamente que você me deu um puxão de orelha sobre não deixar para quando fosse tarde demais".

Bruno Oliveira, capelão do INCA (Instituto Nacional do Câncer), publicou em sua rede: "(...) Nunca consegui discordar das suas palavras ditas ou escritas, eu só... Degustei cada lição, cada reflexão. Hoje queria discordar de você, querida. Sim, como disse neste stories postado a pouco, você não nos prometeu a eternidade. Mas o interessante é que a origem da palavra "eterno" no grego antigo é aionios. Eterno não é algo que dura para sempre. Aionios é mais que duração, pois envolve qualidade. Esta palavra é frequentemente usada como adjetivo nos escritos antigos para descrever Deus. No sentido mais exato, aionios não se configura em uma vida sem fim, mas em uma vida divina. A eternidade está embebecida de serenidade. É como se o próprio Deus nos convidasse pra viver uma vida eterna, terna, divina, vivida com toda intensidade e entrega. AnaMi, vc não nos prometeu a eternidade, mas sua vida sempre foi eterna, aionios, divina! E só queria lhe agradecer por tanto".

Outras amigas e admiradores seguiram a onda e AnaMi tem recebido mensagens de carinho a cada hora que passa.

A bucketlist de AnaMi começou a todo vapor.

# Fazer algo perigoso

# Comer dobradinha do Mocotó e da minha mãe, polvo da Gê, arroz imoral do Tom

# Festa na Vila inFINITO

# Dormir mais uma vez na minha casa

# Ver o documentário

# Conhecer a Lúcia Helena Galvão pessoalmente

# Ver o Malbec (cachorro)

O documentário a que se refere é o "Quantos Dias, Quantas Noites", produzido pela Maria Farinha Filmes e dirigido por Cacau Rhoden. Com previsão de lançamento ainda no primeiro semestre deste ano, o filme fala sobre longevidade. Em uma linha mais política, deixa claro a desigualdade do acesso a cuidados no final da vida.

AnaMi é uma das entrevistadas. "Essa história não é sobre o câncer, é sobre viver, é sobre dançar com o tempo". Esse pensamento é muito presente na filosofia paliativista. Estar vivo, até o último segundo.

Cacau Rhoden, diretor e roteirista, conheceu AnaMi em uma palestra e ficou arrebatado. "A narrativa tradicional é tratar longevidade como uma cronologia. Falamos em o que fazer para chegar a uma idade avançada. AnaMi revela a longevidade como intensidade de vida e não como uma cronologia. Seu legado é a redefinição do conceito de longevidade".

AnaMi ganhou uma sessão de cinema no Hospital 9 de Julho, em que está internada. Em um telão, assistiu a um primeiro corte. Em 32 anos trabalhando com cinema, Cacau diz nunca ter passado por uma exibição assim. Com direito a pipoca, balões, familiares, amigos, a equipe médica, como uma grande estreia, para uma paciente crítica da UTI.

Nessa mesma sessão, AnaMi recebeu uma surpresa: um vídeo da cantora e compositora Duda Beat. Duda diz que ficou sabendo da paixão de AnaMi por sua música Bixinho. Afirmou ter admiração por seu trabalho em desmistificar a finitude e os cuidados paliativos.

AnaMi também recebeu um vídeo da atriz Marjorie Estiano, que leu seus dois livros. "Eu tava fazendo uma personagem que estava passando por uma situação que tinha algo em comum com a sua. E te encontrei. Sempre muito bom ouvir você falar, seu humor, sua ironia. A leveza e a profundidade com que você lida por tudo".

Outro vídeo foi de Rodrigo Oliveira, chefe do restaurante Mocotó "Fiquei sabendo que você adora a dobradinha, assim como eu. Arrumei um portador para te levar a marmitinha do Mocotó".

Um dos depoimentos de AnaMi no documentário é feito na Casa do Cuidar, uma organização social sem fins lucrativos que se dedica ao ensino de cuidados paliativos. AnaMi diz: "eu me tornei uma ativista disso porque me encanta muito o fato de que são pessoas que gostam de outras pessoas no seu estado de maior vulnerabilidade, onde elas não têm nada para dar em troca".

Mas AnaMi tem muito a dar. A forma como decidiu viver sua vida inspirou e ainda irá inspirar muita gente. É essa onda de calor que ela recebe agora. A oportunidade de ser celebrada em vida. As homenagens estão sendo feitas enquanto ela respira. Agradecimentos sinceros, com uma pontinha de dor de quem irá sentir saudades. É a despedida de Hamlet. Em sua frase final: "o resto é silêncio".

"O retrato de você viver bem é saber que a hora que acabar, eu vou ter feito tudo. Tudo mesmo. Eu quero realmente estar em paz pensando que eu fui a melhor humana que eu pude ser". - AnaMi do documentário "Quantos dias, Quantas Noites".

Mulher lança cachecol ao vento, na frente da torre Eiffel
Ana Michelle Soares em Paris, homenageando a amiga Renata Pujan - Arquivo Pessoal
Mulher na frente de um mato verde, olha para o céu
A escritora Ana Michelle Soares em frame do documentário "Quantos dias, quantas noites", produzido pela Maria Farinha Filmes, com direção de Cacau Rhoden - Arquivo pessoal

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.