Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Marília Mendonça: desrespeito ao corpo morto é crime

O caso da cantora traz a urgência de repensarmos a lei

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Se um corpo não tem vida, ele pode ser desrespeitado?

Acredito que a maioria de nós já viu um corpo morto. Ele parece uma casca, um invólucro. Quando fui acompanhar uma autópsia, tive a sensação de estar em um galpão de efeitos especiais.

Os detalhes nos levam para outros caminhos. Uma unha pintada de vermelho, descascada, um pijama de flores, marcas de uma longa estadia no hospital. Essa meia teria sido um presente de Natal? De uma filha, um amigo, uma pessoa querida.

O corpo morto é um símbolo. Ali no velório de caixão aberto, os conhecidos testemunham que ele já não respira mais. Um tanto irreconhecível, mas ainda assim, uma pessoa. Uma vez eu perguntei a um grande amigo, o escritor João Emanuel Carneiro, o que ele achava que acontecia depois da morte. "Acho que não morremos com CPF". Não somos, mais, uma pessoa civil, entendi eu.

Nos tornamos memórias. Desrespeitar um corpo é profanar afeto. É um ato imperdoável e deve ser punido de acordo com o código penal.

Nosso código prevê um crime chamado "vilipêndio de cadáver: profanar, desrespeitar ou ultrajar um corpo". A pena vai até três anos.

Se isto está previsto em lei, é porque ele acontece. Não é de hoje.

Há relatos que sugerem a prática desde o Egito Antigo. O historiador grego Heródoto (485 a.C – 425 a.C) descreve em "Histórias" que, para desencorajar sexo com cadáveres, os egípcios antigos deixavam as mulheres decomporem por dois a quatro dias, antes de entregá-las ao tanatopraxistas —prepapadores de cadáveres para velórios ou funerais.

Nessa madrugada, eu recebi mensagens nervosas de uma tanatopraxista com quem me comunico há seis anos. Nina Maluf hoje também é perita do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Ela encaminhou posts de pessoas pedindo as fotos da perícia de Marília Mendonça. As fotos das partes íntimas já estariam em sites pornográficos. Isso revolta Nina porque é uma prática que ela vê o tempo todo.

Tanatopraxistas denunciam grupos de redes sociais, como o "Festa no IML", que compartilhava fotos de meninas mortas, nuas. Há prints de notícias de mortes trágicas de moças sendo divulgadas com frases como "fará fila para funcionário fazer hora extra no IML".

Uma vez, Nina escutou na funerária onde trabalhava, homens falando sobre uma menina de 24 anos que tinha morrido por suicídio. ‘Toda depilada, nossa que peitão, baita de uma gostosa’. Colocou todo mundo para fora e preparou a menina sozinha, com o respeito merecido.

Teve um funcionário de um IML que compartilhou fotos e foi afastado por "sem vergonhice". Isso é crime, não falta de vergonha na cara.

Já vimos acontecer antes, com pessoas públicas. Como o cantor sertanejo Cristiano Araújo, morto em 2015. Os funcionários que o gravaram morto, foram denunciados.

Nina lançou um abaixo-assinado para sugerir mudanças na lei, hoje brandas demais e com brechas delicadas, como alegar que não houve má fé no ato. A discussão da legislação deve ser tratada com a complexidade e a delicadeza que merece. Seria bem-vindo um grupo de trabalho para refletir sobre isso e propor mudanças.

É fundamental criminalizar atos relacionados a cadáveres de forma mais rigorosa do que acontece hoje.

Tanto a iniciativa de Nina, quanto a minha, partem de um profundo pesar pelas famílias, amigos, conhecidos, e fãs dessas pessoas.

Também, por sofrer em ver esse tipo de atitude colaborando para o estigma dos funcionários do setor funerário. Muitos têm feito um excelente trabalho em humanizar e profissionalizar esse setor, como a diretora funerária Mylena Cooper.

A única forma de acabar com esses estigmas é trazer à tona as irregularidades, tornar a lei mais severa, e enaltecer as iniciativas positivas. Podemos caminhar para termos um setor funerário mais maduro, transparente e em que as pessoas incríveis que trabalham nele, possam ser valorizadas.

Seguimos. Denunciando irregularidades e atitudes desrespeitosas com as pessoas, vivas ou mortas.

Mensagem publicada por Marília Mendonça em seu twitter
Mensagem publicada por Marília Mendonça em seu twitter - Rede social

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