Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Mente

É bonito viver, você não acha, minha filha?

Um casamento, um coração parado e uma missa de um coração pulsante

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Na última sexta-feira, fui à missa de sétimo dia da mãe de uma amiga, Helena. Eu pisquei o olho e, de repente, me imaginei ali, no púlpito. No lugar dela, assim como eu, uma filha única.

Helena diz que a palavra órfã tem dois acentos: um para o rasgo, outro para o eterno lamento. Faço, automaticamente, a simulação desse sentimento.

Fui editando um filme com o pensamento. Mais de quatro décadas atrás, a mãe dela, Maria Eugenia, entrou naquela mesma igreja, para se casar com Paschoal, pai da Helena. Quantas pessoas ao meu redor estiveram sentadas naqueles mesmos bancos, para o casamento, e agora estariam para a despedida? Aos poucos, elas vão desaparecendo, e seus filhos e filhas sobem naquele altar para assumir um espaço novo. São 'os próximos'.

Fui montando cenas na minha cabeça, de histórias de família que ela me contou e as que li no seu livro de crônicas. A minha predileta é esta: Helena e seu pai, ambos psicanalistas, dividiam o consultório. Um dia, ao falar com uma paciente, Helena descreveu a vida como uma onda de eletroencefalograma, com altos e baixos das batidas do coração. Quando não há mais os altos e baixos, é porque a vida acabou, o coração parou. Eles fazem parte do viver, são os sinais vitais.

Ela disse, ao pai, que gostaria de colocar um desses no consultório deles. O pai não gostou." Que ideia mórbida, minha filha. Não dá pra pedir para ter as últimas batidas do coração de alguém".

Helena deixou a ideia de lado.

Até que seu pai ficou doente. No hospital, lá estava a filha agarrada no companheiro de vida e de missão.

E o coração dele parou.

No meio desse rasgo no tempo, surgiu a enfermeira, com o eletroencefalograma do último batimento do pai da Helena impresso nas mãos. Dizia que imprimiram dois, não se sabe por quê. Entregou um deles à filha.

Está emoldurado na parede do consultório que ela passou a assumir sozinha. Para lembrar aos pacientes que os altos e baixos são a prova concreta da vida. E que, ao contrário do que diz o ditado, as filhas têm sempre razão.

Reproduzo aqui o texto lido por Helena, na missa de sétimo dia de sua mãe. Foi um longo processo cuidando - e morando - com Maria Eugenia, enquanto avançava a demência. Os poucos momentos de lucidez eram sentidos com a profundidade com que Helena leva a vida.

No último deles, sua mãe disse, enquanto a filha penteava o cabelo da mãe: é bonito viver, você não acha minha filha?.

Sim, é muito bonito viver. É extraordinário.

É bonito viver, você não acha, minha filha?

Helena Cunha Di Ciero

Um dia perguntei para minha mãe se ela amava meu pai quando se casou com ele em 1979, nessa mesma igreja que escolhi para fazer sua missa de sétimo dia.

Ela me respondeu que achava que amava, mas que depois, veio o primeiro problema de saúde dele e ela pensou: Eu achava que aquilo era amor, mas não, hoje é que é. Aquilo que eu achava que era amor, não era. Amor é isso.

Depois vieram as dificuldades financeiras e matrimoniais e após superá-las ela percebeu que o que sentia anteriormente não era bem amor, agora sim.

"Meu ponto, minha filha, é que quando a gente acha que chegou no limite do amor ele sempre estica mais um pouquinho. E isso acontece, quando ele é de verdade".

Eu achava que amava minha mãe, até que meu pai morreu e nos vimos juntas, lutando para voltar a sermos felizes. E conseguimos. E então ela adoeceu, e meu amor se agigantou a ponto de celebrar cada conquista que ela fazia: Um bom dia, um olhar, ou simplesmente quando ela falava meu nome. Pronto, já estava feliz. Dessa vez, era eu a mãe orgulhosa.

Num desses últimos dias, enquanto eu penteava seu cabelo, ela me disse uma frase completa e inesquecível: É bonito viver, você não acha, minha filha?

Foi bonito ser filha dessa mulher elegante, amiga, divertida e que se entusiasmava com qualquer gesto de carinho.

No velório, todos a descreviam como alguém que sabia reconhecer aquilo que era belo. Eu acho que na verdade, o que era belo mesmo era a forma dela amar e celebrar a vida.

Tenho certeza que seus netos a fizeram muito feliz e ela soube agradecê-los partindo logo após eles a colocarem na cama. Encantada com a cena, fotografei.

Meu passado e meu futuro num laço eternizado numa cena inesquecível. Não sabia que era a última vez. Mas é bonito viver, não é mãe? Você estava certa.

E agradeço por ter sido generosa comigo fazendo um desmame gradual da vida e indo aos poucos.

Deixo aqui meu agradecimento às cuidadoras: Veronica, Patrícia, Néia, Dulce, Gertrudes e Alcione que cuidaram tão bem dela no final da vida. Assim como a dedicação da fisio-respiratória Denise, da fono Angélica e da T.O. Patrícia.

O amor se estica mesmo e alcança as pessoas que fazem com que o percurso do luto seja menos cruel.

Tem um ditado africano que diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança, que não é algo que se faz sozinho. Foi preciso uma aldeia para me ajudar a me despedir da minha mãe. E a elas sou eternamente grata, assim como minhas tias e primas, amigas eternas, meu marido Daniel e meus filhos: Francisco e Ana Chiara.

Foi por causa da avó de vocês que eu aprendi a amar e a ter prazer em ser mãe. Lição que tento executar no nosso lar, honrando essa rainha mãe.

Me despeço com um amor infinito, que espero que se amplie e chegue numa espiral até o céu, como um beijo de boa noite de mãe.

Boa noite mãe, durma com os anjos e encontre o papai.

Fico por aqui com tudo que você me deu, dentro de mim.

E cada verso meu será, para te dizer , que eu sei que vou te amar por toda a minha vida.

Helena Cunha Di Ciero é psicanalista e escritora, autora do livro Instantes de Dentro. E será filha da Maria Eugênia e do Paschoal, para sempre.

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