Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Quem velará nossos mortos?

Os vínculos profundos que cultivamos com quem nos ampara em nossos lutos

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Cynthia Araújo

Doutora em Direito, autora de 'A Vida Afinal: Conversas Difíceis Demais para se Ter em Voz Alta'

Recentemente, fui a um velório onde não encontrei nenhuma das pessoas que imaginava encontrar. Quando fui avisada da morte por uma pessoa pouco conhecida, corri para avisar amigos que me pareciam mais próximos do que eu da família enlutada, mas que, como descobri, ainda não sabiam do acontecido.

Costumamos falar sobre a importância de pensar na própria morte, no próprio velório, se é que se quer ter um. Pensamos na música que deve ser tocada, se deve haver uma celebração religiosa, formal, sóbria ou animada. Mas nos últimos tempos tenho pensado mais nos nossos papeis nas outras mortes.

O primeiro velório de que me lembro aconteceu bem tarde na minha vida. Eu já era adolescente. Se fui a algum quando criança, não me recordo. Mas acho que não. Até hoje, as pessoas estranham levar crianças a velórios.

Desde então, tenho curiosidade sobre tudo que acontece ali. Olho as demais salas, vejo o nome de quem faleceu, observo se os eventos estão cheios, confiro os remetentes das coroas de flores, reparo nas frases escolhidas - é tão difícil pensar em uma mensagem original. Sempre fico emocionada quando percebo que mesmo pessoas a quilômetros de distância deram jeito de fazer um carinho chegar a tempo.

Depois de estranhar a falta de conhecidos naquele episódio recente, comecei a me perguntar sobre como decidimos a quais velórios não podemos faltar. Quais são os velórios imperdíveis para mim? De quais parentes, de quais dos meus amigos, dos pais e mães de quais dos meus amigos?

No início da pandemia, milhões de pessoas no mundo inteiro tiveram que se despedir sem os ritos que nos permitem ser consolados, abraçados e até esquecermos brevemente da tristeza, ao recordar memórias antigas com quem há tempos não víamos. Dei a esse momento peculiar da história humana o nome de Antígona moderna.

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SÃO PAULO, SP, BRASIL, 03.08.2020. Vista aérea das covas recém abertas e dos túmulos onde foram sepultadas as vitimas do Covid-19 no cemitério da Vila Formosa, na zona leste da capital. (Foto: Lalo de Almeida/Folhapress) - Lalo de Almeida/Folhapress

Na tragédia grega, o rei Creonte proíbe que Antígona sepulte o irmão Polinices. Antígona desafia seu decreto e realiza os ritos fúnebres do irmão, afirmando que a lei do rei não é soberana, e que o direito de enterrar nossos mortos, mais do que um direito dos homens, é um dever imposto pelos deuses.

Há realmente algo de antinatural e cruel na impossibilidade de velar nossos mortos. Pesquisadores de saúde apontam que "a ritualização da morte é indissociável do processo de elaboração das perdas"e que "o caráter expressivo dos rituais possibilita descrever o que não se consegue expressar em palavras".

Superada a fase mais aguda da pandemia, voltamos aos rituais, à possibilidade de reuniões cheias e demoradas para a despedida final. Talvez eu tenha imaginado que fôssemos abraçar essas oportunidades de uma forma ainda mais intensa do que antes. Será que nos tornamos pessoas tão menos presenciais na vida em geral, que os ritos fúnebres também sofreram as consequências?

Um dos maiores absurdos da morte é perceber que, mesmo diante do não-existir-mais, a vida continua acontecendo. A ida a velórios é ato quase sempre não planejado e implica desorganização, depende da boa vontade do chefe no trabalho, de ter com quem deixar sua criança, de conseguir o transporte, muitas vezes uma carona. Em muitas das grandes cidades, os cemitérios ficam distantes do centro. Talvez a arquitetura seja proposital, típica do mundo moderno, em que tentamos a todo custo tirar de vista a finitude.

Diferente da cidade onde nasci, em que o cemitério está escancarado dos dois lados da rua em que eu passava diariamente de casa para o colégio, e que chamávamos exatamente de "rua do cemitério". O que, no entanto, também não a torna mais próxima para mim. Quando minha avó paterna morreu, meu pai estava na Espanha. Eu, minha mãe e minha irmã sentimos o peso de sair de Belo Horizonte e ir representá-lo em Petrópolis, onde ela foi enterrada. Essa responsabilidade custou caro especialmente para minha mãe, que teve, pela primeira vez, sequelas em sua saúde relacionadas a emoções fortes.

Em outros países, não existe essa pressa. Na Alemanha, convites são enviados para a celebração. Dá tempo de se organizar, de viajar a tempo de enterrar um ente querido ou consolar um amigo enlutado. Aqui no Brasil, esperar um dia a mais para que um parente chegue já se torna uma questão. Uma questão que minha avó paterna não aceitaria, segundo minha mãe. Ela sempre disse que fazia questão de morrer e ser velada durante toda uma madrugada e, então, enterrada.

Hoje, é comum que os velórios durem apenas algumas horas, mas, antigamente, duravam a noite toda. Segundo li, isso acontecia pela impossibilidade da Medicina de determinar com precisão a morte. Para se evitar que pessoas fossem enterradas vivas, demorava-se um tempo vigiando-as, com velas nas mãos.

Eu tenho reverência especial pelas perdas. Não é necessário ser alguém muito próximo de mim para que eu tente ir aos ritos de passagem. Sempre mando mensagens para os enlutados e organizo o envio de coroas de flores pelos grupos aos quais pertenço – de amigos, de colegas de trabalho, de uma associação. Já relevei muitas relações estremecidas na crença de que, diante da morte, pequenos infortúnios da vida devem ser ignorados, o que me parece muito natural.

Algumas vezes, perguntei a amigos que moram longe e perderam alguém muito querido: você quer que pegue um avião e vá? Nunca tive uma resposta afirmativa. Talvez, a pergunta tenha significado afeto suficiente. Talvez, eu nem devesse ter perguntado.

Já prometi cantar nos velórios de algumas amigas. Nenhuma delas mora perto, o que não impede que, para mim, isso seja um compromisso.

Quem está longe de onde nasce eventualmente se questiona onde será sua morada final. Se eu morresse hoje, provavelmente seria enterrada em Belo Horizonte, um lugar distante para quase toda minha família e ao menos metade dos meus amigos. Quem apareceria pra despedida, quem entraria em um avião ou pegaria a estrada para o adeus? Quem viria ajudar meu marido, minha filha, meus pais, minha irmã? Não estou pensando exatamente em quem viria por mim. Estou pensando em com quem eu poderia contar para ajudar os meus a passar pela minha partida.

No meu ato final, não haverá o que eu possa fazer. Só posso torcer para que quem ficar receba o melhor acolhimento possível. Mas comecei a fazer uma lista mental das pessoas essenciais para quando eu perder os meus maiores amores, se morrer antes deles. Talvez as faça saber que será muito difícil enfrentar meu luto sem elas.

Penso também naquelas que, embora ostentem o adjetivo de amigas, não são próximas o suficiente para terem notícia da minha perda. Ou que não fazem parte de círculos sociais em que ela será anunciada. Aliás, existe jeito certo de anunciar lutos na era das redes sociais? Essa é uma outra pergunta que tenho me feito. Ao tomarmos conhecimento da morte dos entes queridos dos nossos amigos, quem devemos informar? Até que ponto as pessoas enlutadas querem a exposição?

Talvez velórios sejam como casamentos, em que existe uma certa regra implícita de reciprocidade. Mas quem é que manteria a mesma lista de convidados vinte anos depois? Às vezes acho que quem perde o velório ou os dias seguintes à morte da mãe ou do filho de uma pessoa nem mesmo a conhece mais.

Pode ser que um dos vínculos mais profundos que cultivamos seja com aquelas pessoas que nos amparam nos nossos lutos. Aquelas que se esforçaram para estar presentes nos nossos momentos de maior vulnerabilidade. As que nos abraçaram na perda dos nossos amores. E que abraçarão nossos amores quando não pudermos mais.

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