Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Um funeral impossível

Homenagem para Marcelo Denny nos dois anos de sua morte

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Foto de Marcelo Denny
Foto de Marcelo Denny - Rafael Marques

Meu primeiro abraço em pessoas de fora da minha família em quase dois anos e meio de pandemia foi em um velório. Aliás, foi o primeiro evento social a que fui nesse período. O abraço é algo realmente transformador. Estávamos quase todos de máscara, mas a proximidade do abraço faz a gente ter acesso ao outro, não faz? Acolhe a nossa solidão.

Quantos abraços a pandemia nos tirou. Nos vivos e nos mortos.

Na primeira aula que dei como professora de direito, falei sobre Antígona, assim como havia aprendido na primeira aula de direito como aluna. Usamos a tragédia grega escrita por Sófocles para falar sobre direito positivo (a lei dos homens, normas que criamos para reger a sociedade) e direito natural (que pode ser entendida como a lei de Deus ou dos deuses). Lá em março ou abril de 2020, na inacabável era das lives, fui convidada para falar sobre fim de vida e acabei sendo questionada sobre o não-direito de enterrar nossos mortos durante a pandemia de uma doença contagiosa.

Naquela época, eu chamei o nosso momento de Antígona moderna. A despedida sem despedida.

Na tragédia grega, o rei Creonte proíbe que Antígona sepulte o irmão Polinices. Antígona desafia seu decreto e realiza os ritos fúnebres do irmão, afirmando que a lei do rei não é a lei soberana: o direito de enterrar nossos mortos, mais do que um direito dos homens, é um dever imposto pelos deuses.

Há realmente algo de antinatural e muito cruel na impossibilidade de velar nossos mortos. Pesquisadores de saúde apontam que "a ritualização da morte é indissociável do processo de elaboração das perdas"e que "o caráter expressivo dos rituais possibilita descrever o que não se consegue expressar em palavras".

A família de arte e de vida construída ao redor do artista da performance, pesquisador, diretor teatral e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Marcelo Denny, viveu sua própria Antígona. Às 9 horas e 2 minutos do dia 31 de agosto de 2020, morria, vítima de infarto fulminante o performer nacionalmente conhecido pela obra "Cegos", que criou junto ao Professor Marcos Bulhões. Nessa intervenção urbana, que tem a proposta de criticar a condição massacrante do trabalho corporativo, 25 performers com trajes de executivos e cobertos por quilos de argila caminharam na Avenida Paulista, em 2014.

Na época da sua morte, a pandemia de Covid-19 ainda estava no início e o sepultamento ocorreu em sua cidade natal, Pindamonhangaba/SP, longe das suas pessoas mais próximas, amigos de arte e performance. Longe dos desejos que ele tinha para o seu último ato, impedidos pelo contexto sanitário e pela intransigência da família de sangue.

Depois da violência que representou a morte repentina do Denny, seus amigos se sentiram novamente violentados. Ao conferir ao núcleo familiar biológico plenos poderes para dispor sobre os ritos fúnebres do artista, impedindo a realização da última performance do seu corpo- que sempre lhe fora tão caro- e impondo elementos conservadores tão dissociados da sua vida, o Estado agrediu a família afetiva enlutada e o Denny.

Mas não a sua memória.

No último dia 23 de agosto, fiquei sabendo que haverá um "funeral impossível" para Marcelo Denny no aniversário de dois anos da sua morte. A descrição do evento me chamou a atenção: "dia 31/08 o Teatro da PombaGira e o Teatro Mars abrem suas portas para ritualizar da forma que o Denny havia comentado que gostaria que fosse seu rito final".

Marcelo Denny havia pensado muitas vezes sobre seu velório. E dividido as suas vontades com a família que escolheu como sua.

Um filósofo chamado Peter Lopston diz que, usando nossos imperfeitos poderes de memória, intervalos de atenção vacilante e facilidade de distração, a natureza nos induz a uma consciência entorpecida da morte.

É como se não pudéssemos morrer amanhã, como se as centenas ou milhares de pessoas que morrem inesperadamente todos os dias não pudessem ser as nossas pessoas- e nós.

Mas podem, não podem? Nem sempre dá para morrer outro dia. Mortes banais, mortes cruéis, mortes como a de Marcelo Denny.

Minha mãe sempre me disse que a vó Filhinha, mãe do meu pai, achava um absurdo fazer velórios curtos: "quero ser velada a noite toda". Nunca estranhei essa conversa, mas percebo o estranhamento das pessoas quando começo a minha cotidiana conversa sobre fim de vida e ritos fúnebres. Quer ser enterrado? Cremado? O que você quer que eu faça com as suas cinzas se ainda estiver por aqui?, já perguntei algumas vezes ao meu marido.

Para os amigos mais próximos, ofereço meus serviços de cantoria. Alguns escolhem uma música e eu já mando a gravação para ver se está aprovada. Outro dia, uma amiga me sugeriu um slogan: canto gratuitamente em eventos, de casamentos a velórios.

Se você morresse hoje, sua família e seus amigos saberiam o que fazer no seu velório? Aliás, você sabe?

Denny sabia. Ele pensava sobre a morte, porque pensava sobre a urgência da vida. Ou vice-versa.

Leandro Brasilio, produtor do "Desvio Coletivo", um dos grupos de intervenções artísticas concebidos por Denny, me disse que o funeral que acontecerá na próxima quarta-feira, dia 31, será simbólico e performativo, como Denny desejava.

Ao contrário do que aconteceu, Denny não queria ser enterrado no jazigo da família, nem queria que um padre fizesse uma missa pela sua alma. O diretor e produtor do Teatro da PombaGira, Marcelo D’Avilla, disse que o que o grande amigo e parceiro artístico queria era ser cremado, com suas cinzas jogadas na sauna gay. "Ter a verdade dele negada, toda a vontade dele negada e não poder fazer nada, porque a gente não é nada para o Estado, foi o mais difícil. A ideia de fazer esse rito impossível, de um funeral poético, é para que a gente possa fazer um pouco da vontade dele e também uma forma de acalentar a gente, acalentar nossa dor e se sentir abraçado". Uma forma de sanar as dores das saudades e também das violências.

Priscilla Toscano, diretora artística do Desvio Coletivo e uma grande amiga do Denny, foi a primeira pessoa a tomar conhecimento da sua morte. Ela disse que o assunto era muito recorrente com ele, porque ele falava muito sobre a vida e usava a morte para lembrar que estamos vivos. "Sempre que eu falava que estava muito cansada para fazer alguma coisa, ele dizia ‘vai sim, porque daqui a tanto tempo, talvez você esteja morta, não esteja com o mesmo co rpo’, ele era uma pessoa que valorizava muito o que pode ser feito com o corpo".

Priscilla contou que todos os amigos mais próximos do Denny o ouviram falar dos desejos para o seu funeral: "no dia do meu velório, projetem as fotos de todos os boys que eu peguei". Ele sempre pedia para tirar fotos artísticas das pessoas com quem se relacionava amorosamente. Ele também queria que a celebração de sua morte fosse um evento performativo e que tivesse muita Madonna. A obra da cantora sempre foi grande fonte de inspiração para os grupos artísticos do Denny. O artista ainda fazia questão de que houvesse o drink Cuba libre, uma mistura de rum com Coca-Cola, sua bebida preferida e uma espécie de poção mágica do teatro da PombaGira, de que Denny foi fundador e diretor.

"Quem realmente era amigo do Denny sabia desses três elementos. Esse ritual que vai acontecer no dia 31, quando faz dois anos da partida dele, vai ter muita projeção de imagem, vai ter muita Cuba e muita Madonna, mas, principalmente, muita performance. O maior legado do Denny, os performers que ele ajudou a transformar, a construir. E o teatro da Pomba Gira é um baú de pessoas que o Denny ajudou a formar. Foi uma perda muito grande, eu senti muito".

Os amigos dizem que uma das características fundamentais da pessoa Marcelo Denny era sua devoção à vida. Leandro Brasilio diz que, como artista visceral que era, Denny sabia que o superlativo da vida é viver.

Dedicatória de Marcelo Denny em livro com os escritos Expandir! A vida! A arte!
Dedicatória de Marcelo Denny - Foto pessoal

Segundo Denise Fujimoto, o sentido de viver para o melhor amigo não era apenas o de efusividade, de festejo, mas o de pulsão de vida.

"A solução dele era sempre direcionar para a vida. Ele negava muito a morte nesse sentido"- de não estar vivo na maior plenitude possível. "Ele sempre falava que, apesar de a vida ser injusta, ingrata, a gente tem que celebrar. Denny não tinha a menor vocação para glamourizar o sofrimento".

A morte do Denny foi absolutamente repentina. Ele teve um infarto fulminante, ainda jovem e sem problemas de saúde conhecidos. Este texto, que me levou para muitos outros caminhos, começou pela vontade de saber como surgiu a ideia de realizar um funeral dois anos depois da sua morte. Fiquei me perguntando se não deveríamos fazer os funerais de todas as pessoas que morreram nas fases agudas da pandemia, quando seus corpos não puderam ser velados e seus enlutados não foram consolados.

Provavelmente, a maior parte de nós passou por isso nesse período. Quem é que não perdeu ninguém nesses dois anos e meio? Até hoje, eu penso no absurdo que é não ter abraçado a tia Clara quando o tio Zezinho morreu e penso na dificuldade de aceitar que ele não está mais aqui.

Mesmo quem estuda sobre morte, quem pensa no assunto com a frequência inversa à sugerida por Lopston, espera pelas últimas despedidas, ainda que póstumas. Algo fica em suspenso quando somos proibidos de performar os nossos ritos de passagem.

Leandro Brasilio e Priscilla Toscano me disseram a mesma coisa sobre Denny: ele não separava a arte da vida. Talvez também por isso, a ideia de um funeral fosse sempre tão corrente. Na vida e na arte, as coisas chegam ao fim.

Mas a gente espera pelo ato final, ficamos confusos quando uma peça ou um filme acabam de repente, deixando tudo em aberto. A vida em aberto.

Além da celebração que acontecerá no próximo dia 31, Denny tem sido homenageado pelo Teatro da PombaGira, com o espetáculo "Máquina", descrito como "um ritual de desmortificação contra a ordem estabelecida" e "uma crítica ao poder e ao sistema necropolítico maquiavélico". "Máquina" é baseado no argumento poético de Marcelo Denny e Marcelo D’Avilla, escrito durante a pandemia, "com uma dramaturgia performativa coletiva que busca cultuar a vida e fazer dos ritos pessoais uma elevação de força conjunta".

Não deu tempo de Denny participar de "Máquina" presencialmente, mas, nas palavras de Leandro Brasilio, "ele continua reverberando entre nós, com sua força e radicalidade, com seu infinito desejo de vida e de viver".

Acho que, no fim das contas, o funeral impossível de Marcelo Denny celebrará que ele segue vivo em cada uma das pessoas que tocou enquanto esteve presente por aqui.

Os desejos póstumos também ajudam a entender sobre a vida- e a arte- e a estabelecer vínculos profundos. E quando eu tiver saído para fora do teu círculo… ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos num outro nível de vínculo, cantaria Caetano.

Dia 31 de agosto de 2022, das 15h às 22h

Um Rito Possível para Marcelo Denny: O Funeral Impossível- Dois anos sem Marcelo Denny – homenagem e depoimentos ao longo do dia

Grande cremação às 21hs

Teatro Mars – Rua João Passalaqua, 80 – Bela Vista

Evento gratuito (haverá um bar aberto para arrecadar fundos para o evento)

Caso alguém queira colaborar com performances, dedicatórias ou qualquer homenagem especial, deve entrar em contato pelo e-mail teatrodapombagira@gmail.com

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