Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Paco Rabanne: visionário, futurista... e místico

Estilista basco era fã de ocultismo e teorias sobre o fim do mundo

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"Na minha terra, hija mía, hay muchas bruxassss. Minha avó, minha mãe, minhas tias: fui criado por brujas".

Estávamos na parte de trás de uma centenária loja de velas, numa ruela do bairro medieval de Tarragona, cidade costeira a uma hora de Barcelona.

Encobertos por uma cortina diáfana, observávamos o ir e vir de turistas na rua, ávidos por registrar arcos milenares, lápides embutidas em muros, pedras acariciadas-cinzeladas-disputadas por mouros, romanos e vikings.

Javi era um homem basco já ido dos anos. O suéter negro de gola rulê contrastava com o cabelo impossivelmente ruivo e o calor infernal do verão. Falava lento e ciciante, as palavras como se estivessem bêbadas arrastando plumas pelos tapetes do Oscar. Lia o tarot para mim.

Nessa tarde, nasceu minha Superstição Pessoal Número 181708979: os bascos, essa gente nortenha que fala uma língua de origem desconhecida, com fama ao mesmo tempo de afáveis e rudes, São Bruxos.

***

Lembrei da longínqua conversa com Javi quando soube da morte do estilista espanhol-basco Paco Rabanne, aos 88 anos, nesta última sexta-feira (3).

Sobre a biografia básica de Paco, os obituários de jornal já falam muito: que perdeu o pai fuzilado durante a guerra Civil Espanhola; que a mãe, costureira do também basco Balenciaga, exilou-se na França com os 4 filhos, Paco então com 5 aninhos; e que seria nessa terra vizinha que, anos mais tarde, triunfaria como inovador, futurista, arquitetônico.

Fotomontagem de homem com bigode olhando a câmera de frente replicado 3 vezes
Paco Rabanne - Reprodução

De fato, Rabanne -- nome de batismo Francisco Rabaneda Cuervo -- estudou arquitetura em Paris. Daí, possivelmente, que suas criações transcendessem tecidos, costuras e modelagens tradicionais.

Os icônicos (anti)vestidos de Paco eram construções elaboradas, investíveis, feitas de materiais como metal ou o "rhodoid", plaquinhas termoplásticas de compostos celulósicos, herança de seu período como ourives de acessórios para marcas de alta costura em Parrí.

Colecionou musas: de Jane Fonda em Barbarella, Audrey Hepburn em Two for The Road ou a fofette Françoise Hardy a zilhões de celebritês modernettes socialites-atrizes-topmodels y cantoras como Rihanna e Lady Gaga.

***

Mas meu ponto é que Paco de fato era também meio bruxo, ou totalmente.

Fanático por ocultismo, astrologia e profecias apocalípticas, escreveu diversos livros relacionados. Tinha fissura por imaginar fins de mundo.

Numa das versões, segundo ele, Paris seria destruída pela estação espacial Mir -- uma interpretação muy sua de uma predição de Nostradamus.

Paco também acreditava em ETs, jurava que tinha 75 mil anos e que um ancestral seu tinha matado Tutancâmon. Em uma de suas muitas encarnações, teria sido uma prostituta. Não uma qualquer: amante de Luís XV.

Seu primeiro perfume feminino nasceu em 1969, um ano encharcado de revoluções cívicas e culturais.

Chamado Calandre, assim resumiu Paco sua visão na época: a fragrância evocaria um casal trepando no capô de um carro na praia. Nunca notas de sândalo, vetiver e lírio tiveram tanto appeal.

Pode ser coisa de basco criado por bruxas. Não sei. Pero que las hay, las hay, e alguma certamente lançou seu feitiço nesse genial espanhol de Guipúzcoa.

***

Como Paco, meu querido amigo Javi também veio dessa confluência misteriosa entre as províncias dos Países Bascos e Navarra, onde abundam histórias tanto guerreiras quanto místicas -- inclusive uma das mais famosas, um episódio lamentável da época da Inquisição Espanhola, conhecido como as bruxas de Zugarramurdi (fica pra uma próxima coluna!).

Javi desvela as cartas de um antigo baralho de Camoin-Jodorowsky. Seus dedos, ao deslizar pelas superfícies brilhantes de reis, papisas e rodas da fortuna, tremem.

Ex-maquiador para desfiles de marcas como Yves Saint Laurent, Javi teve que deixar a profissão porque não conseguia mais controlar as mãos com precisão. Mas, exatamente por isso, diz, aceitou assumir o negócio da família como um desafio.

Quando o conheci, passava seus dias nessa maravilhosa loja coberta de alto a baixo com velas de todos os tipos. Pintadas, esculpidas, decoradas. Vindas ao mundo por suas mãos trêmulas. Que, quando tocavam a parafina, pousavam e descansavam. Mágica, me dizia, saboreando sem pressa o ggggg. A magia da criação...

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