Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Mobilidade intergeracional não se faz só com educação

O racismo estrutural está presente em nós e, na mesma intensidade, estará presente nas salas de aula

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Bruna Cricci

Mestre em economia pela Universidade de São Paulo e atualmente trabalha como consultora na área de Proteção Social do Banco Mundial

"Comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto de como ele é" – essa frase foi dita por uma das escritoras mais importantes do Brasil, Carolina Maria de Jesus. Negra e com a vida marcada por vários maus tratos, ela tocou a sociedade ao escrever de modo fiel sobre a vida dos negros e negras moradores de favela dos anos 1960.

Hoje, a escritora pode ser considerada um símbolo da luta pelos direitos básicos, inclusive os direitos educacionais para todos, mesmo que, contraditoriamente, tenha ficado à margem do sistema educacional formal.

Trinta anos depois da publicação de suas obras, na Constituição de 1988, o direito à educação foi entendido como um princípio promotor de igualdade, bem como, direitos sociais e o Brasil começa a ampliar o acesso ao ensino básico. Diferentemente de Carolina, seus netos tiveram melhores oportunidades de frequentar a escola desde criança.

Imagem em preto e branco de uma mulher branca, de cabelos compridos e lisos, que sorri sem mostrar os dentes
A pesquisadora Bruna Cricci, que é consultora na área de proteção social do Banco Mundial - Divulgação

Apesar do expressivo aumento do acesso à educação no Brasil nos anos 1990, as próximas gerações de famílias em situação de pobreza e negras, como a de Carolina, continuam em situações de maior vulnerabilidade.

Ainda existe no Brasil uma desigualdade social e racial persistente. Evidências indicam que o componente racial tem um papel distinto do componente social na explicação das desigualdades. Indivíduos negros, independentemente de sua classe social, estão associados às situações de maior vulnerabilidade, não apenas no âmbito educacional, como também na saúde, moradia, mercado de trabalho, dentre outros.

Essa desigualdade persistente possui diversas causas e, uma delas, está associada à transmissão de desvantagens sociais entre gerações dentro de uma mesma família.

A minha dissertação de mestrado "Desigualdades raciais na mobilidade intergeracional e fatores escolares: evidências do Estado de São Paulo" buscou compreender as disparidades raciais da mobilidade e como diferentes fatores escolares se associam a esse diferencial.

Unindo dados administrativos da rede pública escolar de São Paulo, com dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), encontro que os indivíduos autodeclarados pretos e pardos também estão em situação de desvantagem no que diz respeito à mobilidade intergeracional.

Há uma brecha racial que está sendo perpetuada ao longo de gerações. Dessa forma, para convergirmos para um mundo de maior equidade, é preciso que os pretos e pardos ascendam socialmente relativamente mais do que os brancos, de modo que, gradativamente, sejamos capazes de zerar a desigualdade racial existente.

Será que a educação, da forma que está posta hoje, está sendo capaz de reduzir essas brechas raciais? Os dados sugerem que não.

Alunos que frequentam escolas com maior desempenho escolar (medido pela nota de provas padronizadas adotadas pelas redes públicas de São Paulo) possuem taxas mais altas de mobilidade intergeracional.

Eles possuem 27% mais chance de ascensão social; 50% mais chance de permanecerem no estrato mais alto da distribuição socioeconômica; e 16% menos probabilidade de queda social.

Contudo, ao analisarmos esses mesmos números separando por cor, vemos que apesar dos alunos pretos e pardos também aumentarem suas probabilidades de ascensão social quando frequentam as melhores escolas, essa probabilidade ainda é 17% menor do que a dos brancos. Para o caso de permanência no estrato social mais alto, a probabilidade dos negros é 13% menor do que a dos brancos, e no caso de queda social é 15% maior.

As diferenças nas probabilidades entre negros e brancos nas escolas de baixo desempenho escolar são ainda mais impactantes: os negros possuem 28% menos chances de ascensão social em comparação com os brancos do mesmo tipo de escola; 26% menos chances de permanecerem no estrato social mais alto e 10% mais chance de queda social.

A educação, como é fornecida hoje nas escolas, não será suficiente para fechar a lacuna entre negros e brancos no Brasil. Tal discurso pode ser conveniente para alguns setores, mas os dados enaltecem o limite da educação.

A escola é, em última instância, um reflexo da nossa sociedade. O racismo estrutural está presente em nós e, na mesma intensidade, ele estará presente nas salas de aula. Para acabar com as injustiças do país e para que não corramos o risco de perdermos novas Carolinas de Jesus, é preciso, antes de mais nada, pensar políticas públicas a partir de uma lógica antirracista.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha de S.Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Bruna Cricci foi "Três raças tristes", do Reginaldo Bessa.

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