Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Quem não tem fome não tem pressa

Problemas persistentes como fome e miséria contrastam com evidências de alternativas de políticas públicas, revelando fracasso social

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Ricardo Jerônimo Mota

é head da área de Inteligência estratégica do Pacto Contra a Fome, economista de formação e especialista em gestão pública

Precisamos falar sobre a fome. A pobreza e a desigualdade estão na raiz do problema da fome, o que gera impactos diversos e entre eles está o abandono escolar. Esse fator impacta a inclusão produtiva do capital humano, reduzindo a probabilidade de inovação e aumento da produtividade, que, por sua vez, geram um entrave ao desenvolvimento econômico e à geração de renda aos cidadãos, o que resulta também numa maior dificuldade do Estado em dedicar orçamento público para as garantias de direitos básicos ao cidadão.

Evidências abundantes se acumulam: estudo econométrico recente, realizado por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo), demonstra a correlação da insegurança alimentar com a pobreza e as desigualdades regionais, afetando especialmente mulheres, negros e crianças. Na educação em particular, diversos estudos já demonstraram uma forte correlação entre a fome e a probabilidade de repetência e abandono escolar, sendo este último, um dos problemas-chave no investimento educacional, com custos estimados de R$ 124 bilhões para a sociedade.

O economista Ricardo Jerônimo Mota , da área de inteligência estratégica do Pacto Contra a Fome - Divulgação

O Brasil está entre os países com menores taxas de mobilidade social, e a educação é uma grande força motriz para criar oportunidades na redução da desigualdade social e quebrar o ciclo da pobreza. O fenômeno da fome aparece então como uma barreira que inviabiliza os efeitos esperados na educação e em outras políticas públicas, ceifando possibilidades de emancipação dos cidadãos. Esse é, provavelmente, um dos maiores gargalos ao desenvolvimento socioeconômico.

Josué de Castro, em 1935, foi o primeiro a constatar que a baixa produtividade no setor da indústria de Recife era causada não pela doença, mas pela fome. Passados 60 anos, ainda havia uma má compreensão do fenômeno, o foco em políticas públicas estava na oferta insuficiente de alimentos. Nos anos seguintes houve um forte crescimento da indústria agropecuária e da oferta de alimentos, e a fome seguiu persistente. Apenas, a partir de uma sequência de aprimoramentos em programas como o Fome Zero e o Bolsa Família, que viabilizaram um acesso à renda mais expressivo, que o Brasil foi capaz de sair do mapa da fome em 2014.

Os anos que se seguiram foram de fortes desmontes de políticas públicas de combate à fome, acompanhados de um crescimento vertiginoso da fome e da insegurança alimentar. Em 2013, 25% da população vivia a condição de insegurança alimentar. Em 2022, passamos para 58%.

Erros e instabilidades nas decisões de Estado geram uma montanha-russa nos indicadores sociais, as consequências são sentidas por aqueles que estão mais distantes da tomada de decisão e sofrem as mazelas da exclusão social insistente em nosso país. A negligência e a indiferença por parte da sociedade civil a algo tão indigno quanto à fome é sintomático de um país que acumula em sua raiz as chagas do racismo, do machismo e do elitismo.

Quaisquer concepções de solução a um fenômeno complexo como a fome, se mal formulada por gestores públicos, nos coloca à mercê de um laboratório da morte, não apenas dos indivíduos, mas do tecido social como um todo. A importância de construir uma visão estratégica interdisciplinar e analisar a relação entre os fenômenos sociais no Brasil a partir das evidências, tornam-se fatores indispensáveis para se enfrentar o problema.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Ricardo Mota foi "Carcará", de Maria Bethânia.

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